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ATO ILÍCITO E EXCLUDENTES DE ILICITUDE (PUBLICADO EM 2005).

ATO ILÍCITO E EXCLUDENTES DE ILICITUDE (PUBLICADO EM 2005).


Felipe Peixoto Braga Netto*



1. Responsabilidade civil decorrente de ilícito: regra geral

2. Entendendo o Direito Civil contemporâneo

3. O ilícito na Teoria Geral do Direito

4. O ilícito civil na experiência jurídica brasileira

4.1. Lícito e ilícito: um abismo teórico

4.2. A ausência de padrões metodológicos severos

4.3. Ilícitos civis: uma categoria com eficácia única?

4.4. Críticas à concepção da eficácia única

5. Convivendo com as outras eficácias

5.1. Ilícito indenizante

5.2. Ilícito caducificante

5.3. Ilícito autorizante

5.4. Ilícito invalidante

6. Analisando as excludentes: excludentes de ilicitude e excludentes de responsabilidade civil

7. Responsabilidade civil decorrente de atos lícitos: exceção legalmente admitida

7.1. Estado de necessidade (CC, art. 188, II c/c 929 e 930)

7.1.1. Estado de necessidade sem que a pessoa lesada seja culpada pelo perigo

7.1.2. Estado de necessidade quando a pessoa lesada é culpada pelo perigo

7.1.3. Qual o efeito civil da coisa julgada criminal que reconhece o estado de necessidade?

7.2. Legítima defesa (CC, art. 188, I, c/c parágrafo único do art. 930)

7.2.1. Dano causado ao próprio agressor

7.2.2. Proporcionalidade na reação

7.2.3. Dano causado em terceiro

7.2.3.1. Por erro de execução (aberratio ictus)

7.2.3.2.. Por erro de execução em legítima defesa de terceiro

7.2.3.3. Legítima defesa putativa

7.3. Exercício regular de um direito (CC, art. 188, I).

7.4. Estrito cumprimento de dever legal

8. Excludentes de ilicitude: disciplina heterogênea



1. Responsabilidade civil decorrente de ilícito: regra geral


Em direito civil, os ilícitos, em geral, são os fatos jurídicos dos quais decorre o dever de indenizar. Quem, culposamente, causa dano a outrem, comete ato ilícito, e deverá repará-los (Código Civil, art. 186). Quem excede manifestamente os limites impostos pelo fim econômico ou social do direito, pela boa-fé ou pelos bons costumes (Código Civil, art. 187) também pratica ato ilícito, e a conseqüência, em ambos os casos, é a obrigação de repará-los.


Os ilícitos apresentam, como eficácia preponderante no direito civil, o dever de reparar os danos causados. O Código Civil vigente reconheceu essa realidade, e definiu, no art. 927, que: “Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187) causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo”. Portanto, os ilícitos civis, causando danos, obrigam quem os provocou a repará-los.


Como já tivemos oportunidade de explicar em outra ocasião, existem outros efeitos, além do dever de indenizar, que podem resultar dos ilícitos civis (Teoria dos ilícitos civis. Belo Horizonte: Del Rey, 2003). Voltaremos ao tema adiante.


São as condutas ilícitas que, causando danos, fazem surgir, para o agressor, o dever de repará-los. A questão é: apenas os atos ilícitos dão ensejo à responsabilidade civil, ou, ao contrário, também os atos lícitos fazem nascer o dever de indenizar?


A ilicitude ou não do ato, por si só, não diz nada acerca da exclusão da obrigação de reparar. Tanto os lícitos, como os ilícitos, na ordem jurídica brasileira, podem dar ensejo à indenização. Naturalmente, o mais comum é que a responsabilidade civil surja como conseqüência de atos ilícitos, porém nada impede, em certos casos, que o legislador impute o dever de reparar como conseqüência de um ato lícito, à luz de certas especificidades, adiante comentadas.


Cabe ainda lembrar que para que tenhamos configurada a responsabilidade civil, haveremos de contar, necessariamente, com os seguintes elementos: a) ação ou omissão; b) dano; c) nexo causal entre o dano e a conduta. A culpa, tradicionalmente, é apontada como um quarto elemento, porém são tantos, e progressivamente crescem, os casos de responsabilidade sem culpa que seria incorreto inseri-la em caráter geral como um quarto elemento. Na verdade a culpa é apenas pressuposto da responsabilidade civil subjetiva, tal como colocada no art. 186 do Código Civil.


Entendemos pertinente, porém, antes de aprofundar o debate, contextualizar o direito civil contemporâneo, para que as soluções possam ser banhadas de coerência.


2. Entendendo o Direito Civil contemporâneo



Buscaremos, neste tópico, contextualizar o direito civil contemporâneo, evidenciando as mudanças que têm redefinido seu perfil. O direito civil, tradicionalmente, ao longo de sua rica caminhada - na qual muito se lê da própria história humana -, sempre foi apresentado como o direito por excelência, aquele ramo que provia os demais com os conceitos essenciais, com as noções e categorias que, embora forjadas há perdido tempo, permaneciam, com notável vigor, através dos séculos.


Essa auto-suficiência do direito civil o deixou, durante muito tempo, como que isolado das demais áreas jurídicas. Havia uma implícita petitio principii: nenhum outro ramo do direito seria capaz de fornecer as pautas do direito civil. Mais: não importava, sequer, a constituição política adotada, porquanto o direito civil bastava-se, prescindindo de achegas de outros ramos jurídicos.


Foi no século dezenove qual tal crença atingiu o paroxismo. Sob a égide da Escola da Exegese, o direito civil foi identificado com os códigos civis - ou com o Code de Napoleão, mais propriamente - e difundiu-se o dogma, até hoje repetido, que direito civil é o Código Civil, afastando-se, como impossível, qualquer forma de aproximação do direito civil com outros ramos do saber jurídico, e, a fortiori, qualquer interdisciplinariedade externa.


Ao direito de então importava sobretudo a forma. Era importante estar codificado, constar, de alguma maneira, nos repositórios legais existentes, cujos ápices foram induvidosamente os códigos. Havia um endeusamento da atividade legislativa, considerada sacra e perfeita, em claro detrimento da atividade hermenêutica.


A idéia de codificação, destarte, tão cara aos séculos dezoito e dezenove, foi fundamental nesse processo. Os códigos civis representavam a concretização dos ideais de estabilidade e segurança, próprios às sociedades então existentes. Interessante é que os códigos refletiam não apenas as relações sociais cuja regulação apresentava-se como necessária, mas traduziam respeitável esforço analítico, e forcejavam por incluir todo o arcabouço teórico do direito civil acumulado desde os romanos.


De toda sorte, a era da codificação correspondeu a um período histórico bem definido. Se a sociedade, até o século dezenove, poderia ser caracterizada - em linhas muitos gerais e com a inexatidão intrínseca a semelhantes simplificações - pela constância das relações, atualmente o prisma é bastante diverso.


Hoje predomina, de forma bastante caracterizada, a fragmentação das fontes normativas, com o surgimento de sistemas parciais, com metodologia e terminologia próprias, o que não deixa de ser desconcertante para a mentalidade tradicional do jurista. Não existe mais a fonte; existem uma multiplicidade delas, sem que nenhuma ocupe uma posição de absoluta proeminência, excludente das demais.


O modelo oitocentista de codificação está sendo progressivamente substituído por sistemáticas relativamente autônomas, que congregam, com sucesso, determinadas relações, cuja especificidade autoriza normas próprias. É difícil, atualmente, em termos de direito público e privado, achar algo que não esteja numa zona cinza. As influências recíprocas são muito fortes. Tudo, sob certo aspecto, interpenetra-se. O direito público privatiza-se; o direito privado publiciza-se.


No plano empírico, não há, freqüentemente, espaços estanques. Se, nos grandes códigos, a separação era um objetivo a ser buscado, existindo monumentos do saber privado (códigos civis) e monumentos do publicismo (constituições), hoje prepondera a preocupação prática. Legisla-se, no mundo contemporâneo, sem maiores indagações se a norma é de direito público ou de direito privado. Simplesmente legisla-se, buscando atingir, com eficiência, as finalidades normativas. Há, por certo, referências temáticas (consumidor, meio-ambiente), mas são referências a aspectos da vida social, e não a ramos do direito.


Norberto Bobbio constatou que a distinção entre direito público e privado, em si mesma dinâmica e relativa, não tem nenhuma razão para subsistir, se adotado, como critério de bipartição, as fontes normativas. Atualmente, seduz poucos a ilusão de um código que discipline, com exaustão, a vida civil. A pretensão de plenitude, traduzida num sistema totalizador de normas integradas, cedeu espaço para uma nova realidade, demasiadamente complexa para caber num único instrumento normativo.


Toda essa gama de fatores contribuiu, em variável medida, para que o direito civil deixasse de ser, com destacada hegemonia, o definidor das pautas jurídicas. Atualmente o direito civil submete-se, como os demais ramos, aos ditames constitucionais, não havendo desníveis hierárquicos senão em relação à Constituição, como instrumento que plasma todo o sistema jurídico.


O direito civil deixou de ser o fornecedor por excelência do modo de ser jurídico. Houve um progressivo deslocamento da órbita do sistema jurídico, cujo centro passou a ser a Constituição, e seus valores fundamentais. Com esse fenômeno, o direito civil passa a ser apenas mais um setor, sem status diferenciado, devendo pautar seus institutos, conceitos e normas pelo crivo dos valores institucionalizados na Constituição.


Nessa medida, dificilmente teremos, no plano do direito civil, uma conduta aberrantemente agressora das convicções sociais como conforme ao direito. Há quem afirme que em face da atual Constituição brasileira, que adotou, entre os princípios fundamentais da República, a cidadania, a dignidade da pessoa humana (art. 1º, I e III), e entre os objetivos fundamentais da República a construção de uma sociedade livre, justa e solidária (art. 3º, I), qualquer lei injusta será potencialmente inconstitucional.


Fala-se então em "despatrimonialização", "repersonalização", como questões que estão na ordem do dia, instando os juristas a reler toda a legislação infra-constitucional com novos olhos, tendo presentes os valores constitucionalmente prestigiados. Essa redefinição dos valores do direito civil exige certa humildade epistemológica. É dizer: ao civilista moderno não é dado isolar-se, manter-se em clausura intelectual, como se no século dezoito estivesse. O direito de hoje exige uma abordagem menos estreita e parcial, que possibilite visões multi-setorais e portanto mais completas.


É preciso compreender, quando se fala em crise, que se está diante de um termo que comporta várias significações. Crise pode significar não apenas o fim de um modelo ou concepção, mas também sua transformação. Assim, determinados tipos de sociedade ou de cultura é que estariam em crise, e não a sociedade ou a cultura. Traçando um paralelo, não é o direito civil que está em crise, mas sim uma determinada concepção a seu respeito.


Quando o Código Civil de 1916 foi promulgado, a Constituição então vigente vedava que os mendigos se habilitassem no processo eleitoral. Tratava-se de norma que vigeu até a Constituição de 1934. Vedava-se, através dela, a participação como eleitor em razão de um só critério: a posse (ou sua ausência) de bens materiais.


Se recuarmos ainda mais no tempo, veremos, no direito romano, o direito dos pais à vida e à morte dos filhos, assim como à sua venda e exposição. É possível, na evolução dos institutos, notar uma lenta porém contínua caminhada no sentido da superação dos valores estritamente argentários, em favor de considerações de ordem ética, que atentam para a dignidade humana.


Atualmente, verifica-se um crescente esvaziamento das concepções estritamente baseadas no patrimônio, preponderantes, na sistemática tradicional, até mesmo nas relações familiares. Sob o influxo mesmo dos valores trazidos ao sistema pela Constituição, o eixo temático do direito civil modificou-se, adjetivando-se de constitucional, e recebendo, como valor fundante do sistema, a pessoa humana, em suas múltiplas dimensões.


A dignidade da pessoa humana, por exemplo, ilumina e condiciona a incidência de qualquer norma civil. Seria equivocado supor que se trata de norma dirigida apenas ao legislador. Os princípios atuam, sem intermediários, nas condutas a eles pertinentes, plasmando-as e tornando lícitos ou ilícitos os comportamentos que afirmam ou contrariam suas diretrizes de valor.


O Supremo Tribunal Federal, a propósito, em julgado de sua segunda Turma, chancelou a tese da aplicação direta dos direitos fundamentais às relações privadas (Drittwirkung) - também chamada de eficácia horizontal dos direitos fundamentais - aplicando as garantias constitucionais do devido processo legal, contraditório e ampla defesa às associações privadas.


Ponderou, na oportunidade, o STF: “As violações a direitos fundamentais não ocorrem somente no âmbio das relações entre o cidadão e o Estado, mas igualmente nas relações travadas entre pessoas físicas e jurídicas de direito privado. Assim os direitos fundamentais assegurados pela Constituição vinculam diretamente não apenas os poderes públicos, estando direcionados também à proteção dos particulares em face dos poderes privados” (STF, RE 201.819, Rel. Min. Ellen Gracie, Rel. p/ acórdão Min. Gilmar Mendes, j. 11/10/05, p. DJ 27/10/06).



3. O ilícito na Teoria Geral do Direito


O ilícito é categoria fundamental na ciência do direito. Pode-se mesmo considerá-lo um conceito fundamental, no sentido que Felix Somlo confere ao termo. Com efeito, seria possível imaginar um ordenamento jurídico sem espécies ilícitas? A adaptação social que o direito promove, com a especificidade que lhe é própria, dificilmente seria realizável sem o conceito de ilicitude.


O ilícito espraia-se por todo o direito, seja este tido em sua dimensão de objeto, sobre o qual os estudiosos, em meta-linguaguem, emitem proposições, seja o direito estudado em sua dimensão ciência, como cogitação sobre o fenômeno que se apresenta através de princípios e normas. Sua relevância é tamanha que as grandes teorias que intentam explicar o direito, a exemplo da de Kelsen, engendram todo um sistema a partir do ilícito, conceituado-o como o pressuposto para a aplicação da sanção.


A chamada ciência dogmática do direito, ou "ciência dos juristas", ocupa posto privilegiado no universo das cogitações científicas clássicas a respeito do Direito. É uma ciência do conteúdo, como exposição sistemática de um sistema jurídico positivo. Sociologicamente, é possível afirmar, sem qualquer juízo de valor, que a dogmática jurídica tem lugar de destaque, sendo o locus por excelência das discussões a respeito dos conceitos fundamentais do direito. Existem, destarte, múltiplas possibilidades de conhecimento jurídico. Por conhecimento jurídico entenda-se "qualquer espécie de saber que se dirija ao direito com pretensão cognoscente". Cada setor do conhecimento, obviamente, tem suas técnicas de investigação específicas, com método e tecnologia próprias.


E no cume da ciência dogmática está a teoria geral do direito. É que a divisão do direito em variados e distintos ramos, para efeitos didáticos e metodológicos, não apaga a unidade intrínseca do ordenamento jurídico, como vasto conglomerado de princípios e normas dispostos em forma de sistema. Assim, sob o continuum do universo jurídico traçam-se setores diferenciados de conhecimento: são as ciências jurídicas dogmáticas. E, sobre todas elas, arrumando sistematicamente o que está fragmentado em vários sub-campos, está a teoria geral do direito.


Ela representa como que um campo de intersecção, um lugar onde os problemas genéricos, comuns a todos os ramos do direito se encontram, e devem receber idêntico tratamento, porque aqui se trabalha com os conceitos fundamentais, tais como norma jurídica, incidência, sanção, fato jurídico, relação jurídica, sujeito de direito, efeito jurídico e outros mais. Já a teoria geral do direito, não obstante possua notável largueza de vistas, pela generalidade que lhe é própria, trabalha com aspectos semânticos, não sintáticos. Deve-se distinguir, desta feita, a generalização formal, que conceitua a lógica jurídica, da generalização material, que, por tratar com os conteúdos, é a que define a teoria geral do direito.


Vale consignar, porque pertinente à teoria geral do direito, que se atribui a Kelsen o mérito da descoberta da diferença entre norma jurídica e proposição jurídica. Esta seria a produção científica descritiva daquela; uma sob o império da lógica aponfântica, suscetível dos valores verdade e falsidade, e a outra regida pela lógica deôntica – lógica das normas – e aferida de acordos com os valores de validade e não-validade.


Na teoria kelseniana inexistem contradições entre as normas jurídicas, pois, a seu sentir, uma tal hipótese acabaria por comunicar tais contradições à ciência que estuda o direito, o que destruiria as exigências formais de construção de um sistema científico. Pontes de Miranda, nesse passo, afirma, peremptoriamente, que o sistema jurídico é um sistema lógico, harmônico e isento de contradições. Também a ciência, segundo Pontes, obviamente também não pode abrigar conceitos antitéticos, não só a ciência jurídica, como qualquer outra.


Embora Pontes de Miranda não seja expresso, sempre distinguiu ciência jurídica e direito, este como fenômeno social, e aquela como cogitação sistemática de estudiosos a respeito do objeto material. Para Kelsen, a estrutura lógica da norma de direito é um juízo hipotético que envolve uma conduta como devida, ajuntando uma conseqüência que deve ser aplicada pelo órgão jurisdicional. Assevera este jurista que a lógica da ciência jurídica é necessariamente distinta daquela que preside o estado de coisas nas chamadas ciências naturais. Haveria, portanto, dois modos de se ordenar os fatos do universo, um pela causalidade, próprio das ciências naturais, e outro pela imputação, lidando-se aqui com os conceitos de fato condicionante e fato condicionado.


Nasce, assim, na ciência jurídica, a clássica bipartição entre ser e dever-ser, nascida no neo-kantismo da escola de Baden, com Wildelband e Rickert à frente. Esse dualismo, que não nega, o que seria absurdo, a existência do ser, postula entretanto que tal lógica (do ser, que viera de Aristóteles) revela-se inadequada para explicar a realidade jurídica. A cisão entre ser e dever ser, que antes de transplantada ao campo jurídico já pertencia ao patrimônio filosófico, é considerada, por alguns, como um modo de pensamento, a exemplo do futuro e do passado, e, de tal forma, ineliminável.


O dever-ser não exprime nenhum juízo de valor social, moral, religioso ou político, não se refere ao valor intrinsecamente considerado do que deve ser, mas apenas relaciona, deonticamente, fatos, de jeito que um fato deve ser porque o outro é. “Com o termo ‘norma’ – observa Kelsen – se quer significar que algo deve ser ou acontecer, especialmente que um homem se deve conduzir de determinada maneira”.


Para Kelsen a norma é o sentido de um ato através do qual uma conduta é prescrita, permitida ou especialmente facultada, no sentido de adjudicada à competência de alguém. Assim distingue ele a norma do ato de vontade que a constitui. “Na verdade – diz Kelsen – a norma é um dever-ser e o ato de vontade de que ela constitui o sentido é um ser”.


A questão da sanção sempre ocupou enorme importância na ciência do direito. Pode-se mesmo dividir, sob esse aspecto, as concepções jurídicas em sancionistas e não-sancionistas, como faz Marcos Bernardes de Mello. O critério de bipartição, nesse caso, é o da essencialidade. Seria a sanção integrante necessária da estrutura lógica da norma jurídica? Os não-sancionistas, aduzindo que há inúmeras normas às quais não é relacionada sanção, dizem que podem haver, em normas jurídicas, sanção, porém não com a nota da necessariedade. Já os sancionistas entendem que a sanção está sempre presente, compondo a estrutura lógica da norma, embora advirtam que ela nem sempre se encontra explicitamente prevista no mesmo dispositivo legal.


Kelsen é o representante, por excelência, dos chamados sancionistas, entendendo que o direito é uma ordem coativa, ou seja, é um conglomerado de normas que estatuem atos de coerção. Seu conceito de direito, portanto, seria o de uma ordem segundo a qual, sob certas condições ou pressupostos pela ordem jurídica determinados, deve-se executar um ato de coação, pelo sistema especificado. A norma mais importante, para Kelsen, é a norma primária, a norma que estabelece a coação, como resultado de um ilícito, sendo a secundária uma norma não autônoma, porque dependente da norma sancionadora.


Destarte, a norma somente é jurídica porque estabelece uma sanção. A norma desprovida de conteúdo coercitivo, tornar-se-ia mero preceito moral, desqualificando-se como jurídica. O critério que informa essa classificação, vê-se, é a existência, no chamado preceito, ou prescritor normativo, da sanção, consubstanciada na possibilidade do uso da coação organizada, por intermédio do órgão jurisdicional, de modo a fazer valer as determinações prescritas nas normas.


De acordo com esse entendimento, o papel da norma jurídica cingir-se-ia a definir as condições para o exercício da sanção estatal. Ficaria o direito, nesse passo, reduzido à norma sancionadora, de jeito a revelar a presença da coação. A chamada norma secundária, segundo a terminologia kelseniana originária, onde se revelariam o direito e dever jurídico correlativos, importaria apenas na medida em que serviria de pressuposto da norma primária, esta sim, segundo Kelsen, a autêntica norma jurídica, porque sancionadora.


Já os não-sancionistas, dentre os quais está Pontes de Miranda, defendem que a norma jurídica está completa quanto contém, apenas, a indicação do suporte fáctico e dos efeitos a ele correspondentes. É, por conseguinte, irrelevante haver, ou não, uma sanção para o caso de transgressão. O que é fundamentalmente importante é a existência de uma proposição completa de juridicidade, que se forma com a previsão abstrata da norma, de um ou de um grupo de fatos, aos quais o sistema relaciona determinadas conseqüências jurídicas.


Existe, no que se refere ao ilícito, três vertentes básicas, que grosseiramente definidas podem ser classificadas nos seguintes termos:


  • uma reputa inadmissível que um fato antijurídico, que vai de encontro ao ordenamento possa ser considerado jurídico. É a posição de Caio Mário da Silva Pereira, Vicente Ráo, dentre outros.

  • outra entende que somente por intermédio do ilícito é que se torna possível uma conduta penetrar no mundo do direito. Vê-se que deslocou-se radicalmente a questão para o pólo oposto. É a posição de Kelsen.

  • uma terceira postura entende que apenas tornando um fato jurídico, seja como lícito ou ilícito, e a ele relacionando efeitos, de acordo com os valores que o sistema recolhe como dado social, é que se pode disciplinar, juridicamente, o fato. É a posição de Pontes de Miranda e Marcos Bernardes de Mello.


4. O ilícito civil na experiência jurídica brasileira


4.1. Lícito e ilícito: um abismo teórico - O ilícito não se desenvolveu, gerando monografias e discussões, como os atos lícitos de ordem civil. Estes atingiram notável grau de refinamento teórico, suscitando e resolvendo questões que surgiam do aprofundamento dos debates. Tamanha foi a dimensão do fenômeno, que o nosso Código Civil revogado definiu ato jurídico como ato lícito, eclipsando, totalmente, a categorias dos ilícitos, com ato jurídico gerador de efeitos civis.


Construi-se, destarte, em relação aos lícitos, vigorosa doutrina, que perpassou, durante décadas, a história do direito civil. Baseada, fundamentalmente, na autonomia privada, estabeleceu que as pessoas tinham uma esfera de condução dos próprios interesses ao abrigo de ingerências estranhas, e que poderiam, contratando, preencher esse branco deixado pelas normas.


Trata-se, obviamente, de concepção de forte inspiração liberal, sem falar que a noção de autonomia privada sofre sérios ataques, com o surgimento de estudos demonstrando sua inadequação com as relações contratuais contemporâneas, massificadas e impessoais, que distam, progressivamente, do esquema clássico. Mas é significativo sublinhar o exaustivo trabalho havido, de um lado, de construção de conceitos e categorias tendentes a explicar a realidade dos atos lícitos, e a praticamente nenhuma preocupação com os atos ilícitos, que, paralelamente aos lícitos, povoam o mundo civil.


Os ilícitos sempre se mantiveram à margem, como questão menor, relegados a um plano secundário, quando muito. Não houve, absolutamente, a construção de um estatuto teórico, tal como existe com os lícitos, nem uma unidade lógica de pensamento. As referências, sempre genéricas, em livros também genéricos, limitavam-se, na maioria dos casos, a repetir os pressupostos do ilícito indenizante, reforçando falsos conceitos, como a culpa e do dano, que sempre foram erigidos à condição de pressupostos necessários à definição da ilicitude civil.


4.2. A ausência de padrões metodológicos severos - A análise da jurisprudência não conduziu a doutrina brasileira a uma teorização acerca dos ilícitos. Sem embargo de quase um século de vigência do nosso Código Civil revogado (de 1916), as análises mantiveram-se basicamente as mesmas, desde o início do século passado até o início do nosso século. O panorama teórico dos ilícitos, grosso modo, apresenta-se como uma vasta coleção de fatos empíricos apenas frouxamente ligados pela teoria.


Cabe anotar de passagem – embora não seja possível desenvolver o tema nos limites deste artigo – que a culpa não participa da ontologia do ilícito, em direito civil. Nem mesmo em relação ao Código Civil revogado a afirmação poderia ser sustentada. Aliás, Enneccerus já excelentemente o vira, ao definir como ilícitos civis os atos contrários ao direito, quase sempre culposos, dos quais resulta ex lege uma consequência desvantajosa para o seu autor. Aliás, tal constatação não é propriamente nova. Os direitos da personalidade, em sua clássica formulação, já independiam de culpa para que sua violação se perfizesse. Ou seja, a ofensa à personalidade, em seus múltiplos aspectos, é um ilícito civil, cuja configuração prescinde de culpa.


Ganha força, destarte, a noção da completa ressarcibilidade do dano causado, independente de culpa. Há, nesse sentido, uma retomada da trilha do direito germânico, cuja concepção de responsabilidade extracontratual abstraía do elemento subjetivo.


Retomando o fio do raciocínio iniciado parágrafos atrás: os tratados e manuais de direito civil sempre apresentaram os ilícitos como uma categoria sem muito interesse teórico. A única eficácia possível, na esteira do direito legislado, seria o dever de indenizar. A casuística se encarregaria de estabelecer os casos passíveis de indenização, desde que, é claro, estivessem presentes as clássicas notas (culpa e dano).


Houve, portanto, uma paralisação teórica, um ambiente teoricamente morno, sem discussões significativas. Aliás, a matéria sempre se ressentiu de grave desvio de perspectiva, consistente em tratar dos ilícito em conjunto com a responsabilidade civil. É preciso frisar que os temas, pertinentes à responsabilidade, não guardam necessária relação com os temas relativos aos ilícitos civis.


Algo semelhante, mutatis mutandis, com o que ocorre no direito inglês, onde a constatação do tort dá ensejo à ação de indenização. Se a ação ou omissão é reputada ilícita, pertine a reparação. Não existe, no entanto, uma doutrina sistemática, sendo os casos que formam a teoria. Aliás, o sistema jurídico inglês é conhecido por não dar muita importância à teorização, sendo infenso a construções meramente abstratas, sem relações com os casos reais levados a juízo.


É preciso, entretanto, ressaltar que nem todos os casos de indenização decorrem de ilícitos. Tal ponderação é ponto pacífico em doutrina. Desde os casos clássicos de legítima defesa, estado de necessidade e exercício regular de direito, passando por outras hipóteses, em que a contrariedade ao direito é pré-excluída, o ilícito não se forma, por ausência do sinete da contrariedade ao direito, ainda que persista o dever de indenizar.


4.3. Ilícitos civis: uma categoria com eficácia única? - Uma das mais conhecidas associações, que se faz a respeito dos ilícitos, diz respeito aos efeitos por eles produzidos. De fato, sempre que se pensa em ilícito civil, relaciona-se, quase que intuitivamente, o dever de indenizar, como eficácia naturalmente produzida. Essa é uma idéia que nasceu, muito provavelmente, conforme observamos há pouco, da definição de ilícito do Código Civil de 1916, que relacionou, de forma peremptória, ilícito ao dever de indenizar, como eficácia supostamente única: "Art. 159. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência, ou imprudência, violar direito, ou causar prejuízo a outrem, fica obrigado a reparar o dano".


Tal disposição, que praticamente exaure o Título "Dos Atos Ilícitos" do Código Civil de 1916, sempre foi lida como se esgotasse as possibilidades de ilícitos no campo do direito civil. No entanto, a doutrina poderia, investigando o ordenamento, concluir que não obstante a letra do Código, ilícitos existiam que não participavam daquela definição legal. Não foi esse, contudo, o procedimento adotado. Houve certa mudez doutrinária, possivelmente nascida da convicção de que a opção do legislador estaria acertada. Aliás, a posição doutrinária quanto aos ilícitos civis foi, desde o advento do Código Civil, extremamente restritiva, sempre se entendendo que a matéria iniciava-se e findava-se com a análise do ilícito cujo efeito é a responsabilidade civil (Código Civil de 1916, art. 159; Código Civil de 2002, art. 927).


Bem sintomática dessa crença foi a postura de Clóvis Beviláqua. O ilustre jurista, quando das discussões para a feitura do nosso Código Civil de 1916, pugnava contra a inclusão legislativa dos ilícitos num título único, ao argumento que lhes faltava "a necessária amplitude conceitual". Tal posição - que restou vencida quando da redação do Código - reflete bem a mentalidade dos juristas a respeito da matéria, que não foi sequer encarada como um problema que merecesse cogitação teórica.


O Código Civil vigente se refere aos atos ilícitos por intermédio de duas cláusulas gerais. O art. 186 prescreve: “Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito” .


O art. 187 tem a seguinte redação: “Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes”. Consagrou-se, com esse dispositivo, a teoria do abuso de direito, velha conhecida da jurisprudência, cuja caracterização como ilícito, todavia, era polêmica. Tratamos do tema, analisando a jurisprudência nacional, em outra oportunidade.


Em livro que publicamos ainda antes da vigência do Código Civil de 2002 defendemos a contrariedade ao direito de tais atos, aos quais chamamos, todavia, de “ilícitos funcionais”. Escrevemos na ocasião: “Atualmente, mercê da força, no direito atual, das diretrizes constitucionais pertinentes, é algo fora de dúvida que a utilização de um direito não pode se prestar a fins opostos àqueles que orientaram seu nascimento, nem tampouco podem colidir com princípios maiores, se em choque”.


O art. 187 está informado pela idéia de relatividade dos direitos. Isto é, os direitos flexibilizam-se mutuamente; não há direito isolado, mas dentro do corpo social, onde outros direitos convivem. Pontes de Miranda observou que repugna à consciência moderna a ilimitabilidade no exercício do direito; já não nos servem mais as fórmulas absolutas do direito romano”.


O Código Civil, mais adiante, no art. 927, estatui: “Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo”. É fácil perceber que o Código Civil, se interpretado literalmente, conduz à conclusão que a única eficácia possível, derivada dos ilícitos civil, é a obrigação de indenizar os danos causados.


4.4. Críticas à concepção da eficácia única - Dissemos que o ilícito civil sempre aparece mesclado com a responsabilidade civil. Nunca, pelo menos ao que nos conste, surgiu a preocupação, em pesquisas monográficas, de teorizar o tema, como classe autônoma e de inegável importância de fatos jurídicos. São comuns, destarte, ponderações no sentido da absoluta indissociabilidade entre os atos ilícitos civis e a responsabilidade civil.


Talvez a confusão se explique pela identificação entre o gênero - os ilícitos civis - e uma espécie - o ato ilícito indenizante. Sempre que se falava no tema, invocava-se essa espécie, e tudo que fosse característica sua, atribuía-se, em descabida generalização, à classe, ao gênero ilícito. E como essa espécie é geradora de responsabilidade civil, nasceu outra identificação: ilícito civil é igual à responsabilidade civil.


No entanto, a experiência jurídica moderna desmente tal identificação entre ilícito e responsabilidade civil. Não é possível, teoricamente, manter a tradicional associação. Primeiro, responsabilidade civil é efeito, não é causa. Seu isolamento temático induz a certas análises equivocadas, que ofuscam o fato jurídico, lícito ou ilícito, que origina o dever de indenizar. Depois, uma abordagem restrita à responsabilidade civil necessariamente oblitera as eficácias não indenizantes dos ilícitos civis.


Seria, mutatis mutandis, o mesmo que confundir uma fábrica, produtora de um largo espectro de produtos, com apenas uma de suas produções. A nosso sentir, tal postura empobrece, inexplicavelmente, o contexto dos ilícitos, reduzindo o gênero ao estudo dos efeitos de uma de suas espécies.


A responsabilidade civil - cabe sempre repetir - é efeito de certos ilícitos civis, não de todos. Existem, portanto, ilícitos civis que não produzem, como eficácia, o dever de indenizar. Nada, nestes termos, autoriza uma abordagem conjunta e monolítica, que obscureça as diferenças significativas existentes.


No direito dos oitocentos, cujo paradigma legislativo foi tão bem traduzido pelo nosso Código Civil de 1916, os ilícitos já não ostentavam apenas a eficácia indenizante. Essa foi uma falha de perspectiva advinda do apego ao literalismo do Código. Existiam então - como ainda hoje existem - ilícitos com efeitos que consistem em autorizações, ou ilícitos que implicam na perda de direitos em relação a quem os praticou.


Por outro lado, o dever de indenizar pode resultar de ato lícito. O dever de indenizar resultante de ato praticado em estado de necessidade (que adiante analisaremos) não importa em resultante de ato ilícito, porquanto a contrariedade ao direito foi pré-excluída. Assim, "há indenizabilidade - excepcionalmente, é certo - que não resulta da ilicitude. Reparam-se danos que se causaram sem que os atos, de que resultaram, sejam ilícitos".


Ainda que a maioria dos ilícitos civis importe em dever de indenizar, isso, decerto, não pode servir como escusa para que se lance as demais espécies para debaixo do tapete. Se a eficácia indenizante não exaure o espectro das eficácias possíveis dos ilícitos civis, está evidenciada a inconveniência do critério clássico.


É interessante, portanto, sob o prisma teórico, mostrar que não existe uma relação necessária entre os ilícitos civis e o dever de indenizar. Esse dever, bem vistas as coisas, representa a eficácia de uma espécie de ilícito - o ilícito indenizante -, sem que possa ser tido, ademais, como propriedade exclusiva sua, mercê da possibilidade de surgir como eficácia produzida por um ato lícito.


5. Convivendo com as outras eficácias - A responsabilidade civil é tema cuja relevância não pode ser posta em dúvida. Experimenta, atualmente, notável evolução, com o aprofundamento matizado de seu estudo, sendo visível o surgimento, a cada dia, temas inéditos, a reclamar ponderações e análises. O que nos incomoda, entretanto, é a redução indevida dos ilícitos civis à responsabilidade civil.


Em outra oportunidade elaboramos divisão dos ilícitos civis a partir de três critérios. Escrevemos na ocasião: “Se afirmamos, até aqui, que o ilícito civil é uma classe com várias espécies, compondo um gênero rico e matizado, cabe arrolar as hipóteses, de molde a propiciar uma visão integral do que se fala. Vale dizer que as três propostas de classificação que esboçamos (a partir do suporte fáctico abstrato, dos efeitos produzidos e dos limites subjetivos de eficácia) porque fundadas em critérios de análise distintos, não são excludentes, isto Orlando é, nada impede - antes tudo sugere - que um mesmo fato jurídico seja categorizado simultaneamente nos três planos” .


Contudo, por razões de espaço, nos limitaremos, neste artigo, a uma das classificações propostas: aquela relativa aos efeitos produzidos. Por isso, pela necessidade de exaurir os ilícitos civis encontráveis, julgamos imprescindível categorizá-los também tendo por norte a eficácia, pois somente assim teremos uma visão completa e integral do problema.


Nossa proposta é separar a eficácia, com a seguinte pergunta: qual o efeito que esse ilícito produz? E, com base nisso, traçar um quadro com as modalidades possíveis de eficácia que podem dimanar de um ilícito civil, de jeito a fornecer um material teórico que esgote os esquemas de eficácia existentes.


Assim, eficacialmente falando, os atos ilícitos no direito civil podem ser classificados em:


  • Ilícito indenizante: é todo ilícito cujo efeito é o dever de indenizar. Não importa o ato que está como pressuposto normativo. Se o efeito é reparar, in natura ou in pecunia, o ato ilícito praticado, estaremos diante de um ilícito indenizante.

  • Ilícito caducificante: é todo ilícito cujo efeito é a perda de um direito. Também aqui não importa os dados de fatos aos quais o legislador imputou tal eficácia. Importa, para os termos presentes, que se tenha a perda de um direito como efeito de um ato ilícito. Sendo assim, teremos um ilícito caducificante.

  • Ilícito invalidante: é todo ilícito cujo efeito é a invalidade. Se o ordenamento dispôs que a reação pelo ato ilícito se daria através da negação dos efeitos que o ato normalmente produziria, em virtude da invalidade, o ato é invalidante, que engloba tanto a nulidade quanto a anulabilidade.

  • Ilícito autorizante: é todo ilícito cujo efeito é uma autorização. Assim, em razão doato ilícito o sistema autoriza que a parte prejudicada pratique determinado ato, geralmente em detrimento do ofensor.


Importa analisar, menos superficialmente, cada uma das espécies, em ordem a potencializar-lhes o significado.


5.1. Ilícito indenizante - É o ilícito que produz como eficácia o dever de indenizar. Ressalte-se, porém, que no dever de indenizar pode estar compreendido o dever de ressarcir, que aliás deve ser priorizado. Denota, de qualquer sorte, o dever do agressor de recompor a esfera jurídica do agredido. É tão conhecido e tão comum que nos dispensaremos de maiores referências a propósito (Código Civil, arts. 186 e 187 c/c art. 927).


Digamos que alguém por negligência (míope, resolveu dirigir mesmo tendo esquecido os óculos em casa) provoca dano (colide com veículo alheio). Deverá, como conseqüência, indenizar os prejuízos causados. Haverá, no caso, um ilícito (Código Civil, art. 186), cuja conseqüência será a responsabilidade civil (Código Civil, art. 927).


5.2. Ilícito caducificante - No ilícito caducificante o sistema relaciona ao ilícito a perda de um direito. Aliás, mais propriamente, a perda de qualquer categoria eficacial. Assim, decorre do ilícito, de modo direito e imediato, a perda de um direito.


Estatui, a propósito, o Código Civil, art. 1.638: “Perderá por ato judicial o poder familiar o pai ou a mãe que: I – castigar imoderadamente o filho; II – deixar o filho em abandono; III – praticar atos contrários à moral e aos bons costumes; IV – incidir, reiteradamente, nas faltas previstas no artigo antecedente”. Assim, o pai (ou a mãe) que espanque o filho pode perder o poder familiar. Se a mãe de recém-nascido castiga imoderadamente o filho, poderá perder o poder familiar sobre ele. Trata-se, na espécie, de um ilícito civil, sem prejuízo do ilícito penal porventura caracterizado (lembremos que se o efeito – perda do poder familiar – é civil, o fato jurídico que originou esse efeito também o é. Sem prejuízo, repita-se, do fato configurar, simultaneamente, suporte fático de ilícito penal).


Os ilícitos civis – cabe insistir – podem dar ensejo à perda de direitos ou outras categorias de eficácia. Apenas para exemplificar, o herdeiro que sonegar bens, não os levando à colação, perde o direito que sobre eles pudesse ter (Código Civil, art. 1.992: “O herdeiro que sonegar bens da herança, não os descrevendo no inventário quando estejam em seu poder, ou, com o seu conhecimento, no de outrem, ou que os omitir na colação, a que os deva levar, ou que deixar de restituí-los, perderá o direito que sobre eles lhe caiba”). Quer dizer, a perda de um direito como efeito de um ilícito civil.


Suponhamos que alguém recebeu um apartamento, doado por seu pai. Deverá, no inventário deste, declarar que recebeu tal doação, levando o bem à colação (para compensação com os demais irmãos, por exemplo). Se omitir, escondendo o bem, perderá o direito sobre ele. Trata-se da clássica sanção dos sonegados.


O contraente que pratica ato proibido pelo conteúdo do contrato pode perder certos direitos, como o direito à resolução, o direito à posse de determinado bem, etc. Tal perda não decorrerá de um ato inválido, mas apenas de um ilícito ao qual o sistema imputa, diretamente, a perda de um direito, mercê do ato praticado.


5.3. Ilícito autorizante - São os ilícitos cujo efeito consiste na autorização, facultada pelo sistema, ao ofendido, para praticar, ou não, a seu critério, determinado ato. No ilícito autorizante o ordenamento relaciona ao ilícito uma autorização, que sem o ilícito não existiria. Nasce, destarte, para o ofendido, a possibilidade de praticar certo ato, como efeito do ato ilícito.


É interessante, portanto, sob o prisma teórico, mostrar que não existe uma relação necessária entre os ilícitos civis e o dever de indenizar. Apenas para exemplificar, a ingratidão do donatário é um ilícito civil cujo efeito consiste, exatamente, na possibilidade, que o ordenamento faculta ao doador, de revogar a doação, se assim lhe aprouver (Código Civil, art. 557: “Podem ser revogadas por ingratidão as doações: I – se o donatário atentou contra a vida do doador ou cometeu crime de homicídio doloso contra ele; II – se cometeu contra ele ofensa física; III – se o injuriou gravemente ou o caluniou; IV – se, podendo ministrá-los, recusou ao doador os alimentos de que este necessitava”). Trata-se, portanto, da uma autorização como efeito de um ilícito. Qual o ilícito? A ingratidão do donatário. Qual o efeito? A possibilidade da revogação da doação.


Imaginemos que alguém doe uma fazenda para seu afilhado. O afilhado (donatário), porém, é ingrato para com o doador (conceito de ingratidão de acordo com a lei civil). O Código Civil autoriza o doador, nesse caso, a revogar, caso deseje, a doação válida e formalizada.


Essa possibilidade de revogar a doação – autorização – só existe porque o ilícito foi praticado. Sem o ilícito ela inexistiria. É mais uma demonstração de que os efeitos dos ilícitos civis são múltiplos, não se resumem a uma eficácia única.


Formulemos outra hipótese. Uma pessoa tem seu sítio invadido por desconhecidos. Poderá, caso queira, expulsar à força os invasores, desde que o faça logo e sem excessos. Trata-se de um dos poucos casos de exceção ao monopólio estatal no uso da força, ao lado da legítima defesa. Pontes de Miranda lê tais casos como sendo hipóteses de justiça de mão-própria.


O Código Civil, no art. 1.210, § 1º, regula a situação descrita: “O possuidor turbado, ou esbulhado, poderá manter-se ou restituir-se por sua própria força, contanto que o faça logo; os atos de defesa, ou de desforço, não podem ir além do indispensável à manutenção, ou restituição da posse”. Trata-se, novamente, de uma autorização (expulsar os invasores) que o Código Civil disponibiliza a quem sofre um ilícito civil (no caso, teve sua propriedade invadida).


5.4. Ilícito invalidante - A grande questão, que aqui se põe, não é tanto identificar os inválidos, mas caracterizá-los como lícitos ou ilícitos. A doutrina tradicional, mercê da identificação do ilícito civil com uma de suas espécies, afastou, sem maiores discussões, os inválidos da seara ilícita. Assim, no direito civil, salvo em tópicas manifestações, os inválidos são considerados lícitos, ainda que por exclusão.


Há autores, contudo, que distam dessa orientação. Pontes de Miranda inclina-se em enxergar nos inválidos atos ilícitos. Marcos Bernardes de Mello os tem como inquestionavelmente ilícitos. Paulo Luiz Netto Lôbo, de igual modo, também assim os categoriza.


De fato, as sanções, em direito civil, não se resumem ao ressarcimento, à reparação ou à indenização. Desde que se perceba, com clareza, essa realidade, que emerge do próprio direito legislado, é possível dimensionar, com mais exatidão, os atos inválidos. E, por conseguinte, verificar-lhes o caráter ilícito.


Os efeitos dos ilícitos civis podem assumir, simplesmente, o caráter negativo. Ou seja: o sistema inibe o ato de produzir efeitos, ou alguns deles. É preciso, nesse ponto, firmar uma premissa: invalidade é sanção. É uma sanção atípica, se nos atermos ao senso comum de que sanção, em direito civil, corresponde, fundamentalmente, à reparação dos danos causados, mormente pecuniários.


Não há, de fato, razão jurídica a secundar a peremptória exclusão dos inválidos da seara dos ilícitos civis. Ou seja, a tese tradicional pugna pela conformidade ao direito de atos forjados à base de dolo, coação, etc.


Imagine-se que poderoso fazendeiro, desejando obter a terra de modesto colono, ameaça-lhe (“ou você me vende a terra por tanto, ou sua filha talvez não retorne da escola esse mês...”). O colono, sentindo-se em perigo, realiza a venda. Estaremos diante de um ato lícito? Naturalmente que não. Dispõe, a propósito, o Código Civil, art. 151: “A coação, para viciar a declaração de vontade, há de ser tal que incuta ao paciente fundado temor de dano iminente e considerável à sua pessoa, à sua família ou aos bens”. O artigo seguinte dispõe: “Art. 152. No apreciar a coação, ter-se-ão em conta o sexo, a idade, a condição, a saúde, o temperamento do paciente e todas as demais circunstâncias que possam influir na gravidade dela”. Mais adiante, o Código Civil, no art. 178, dispõe: “É de quatro anos o prazo de decadência para pleitear-se a anulação do negócio jurídico, contado: I – no caso de coação, do dia em que ela cessar”.


Com efeito, como defender o caráter lícito de um contrato em cujo firmamento um dos contraentes foi coagido? A coação é causa de anulação do negócio (Código Civil, art. 171, II). Não há razão jurídica para postular a conformidade ao direito de um ato tal. Eles são contrários ao direito, e como tais ilícitos.


Cabe lembrar que o dualismo lícito/ilícito esgota, sob o prisma da conformidade ou contrariedade ao direito, as possibilidades de categorização dos atos jurídicos. Destarte, o que não for lícito será ilícito, e vice-versa. Portanto, os que perfilham a tese de que somente são ilícitos os atos cujo efeito é a indenização, aceitam, de modo oblíquo, a conformidade ao direito de atos realizados por pessoas coagidas, ou contratos firmados com objetos ilícitos, por exemplo.


Os atos inválidos funcionam, por vezes, como uma espécie de rede de segurança, impedindo a eficácia indesejada pelo sistema jurídico. Nos inválidos apenas ocorre a negativa da produção dos efeitos do ato ilícito realizado, sem que se perca direito já integrante do patrimônio jurídico (caducificantes), sem que surja autorização para praticar um ato (autorizantes), ou sem que surja, necessariamente, o dever de indenizar (indenizantes).


Concluindo essa parte da exposição, sendo certo que já superamos o espaço que nos foi dado – e ainda tendo presente a advertência de Hegel de que o excesso de argumento prejudica a causa – , cabe lembrar que todo sistema jurídico tem de lidar com a violação de suas normas. Estabelecer, juridicamente, padrões de conduta importa em prever, naturalmente, modelos de comportamento que distem desses padrões. O ilícito, nesse sentido, é uma reação, juridicamente organizada, do sistema jurídico contra a conduta que viola seus valores, princípios e regras.


O ilícito civil, em termos de hoje, deve ser perspectivado não só como representante do dever de indenizar, mas também, fundamentalmente, como a categoria que possibilita uma atuação reativa do sistema para evitar a continuação ou a repetição das agressões aos valores e princípios protegidos pelo direito.


Amplia-se, assim, o espectro dos ilícitos civis, com a possibilidade que eles defluam da violação a princípios, sem a tipologia fechada que caracteriza o direito penal. Sustenta-se que os ilícitos civis são abertos, no sentido de que princípios, e não apenas regras, podem servir de base material para sua configuração.


Defende-se que a responsabilidade civil é efeito de uma espécie de ilícito, e não do gênero ilícito civil. Postula-se a existência de outras eficácias, igualmente existentes, que decorrem de ilícitos civis. As sanções civis, desse modo, não se resumem no dever de indenizar ou ressarcir, podendo também compreender: a) a autorização para a prática de certos atos pelo ofendido, b) a perda de certas situações jurídicas (direitos, pretensões e ações) ou c) a neutralização da eficácia jurídica (não produção dos efeitos jurídicos como sanção).


Essa percepção naturalmente conduz a uma notável ampliação da função dos ilícitos no sistema jurídico. De fato, um entendimento meramente estático dos ilícitos, a partir de certas propriedades abstratamente postas, não se concilia com um sistema jurídico fundado em valores e princípios, cujas bases são essencialmente axiológicas, e não puramente lógico-formais (Constituição da República, art, 1º, III; art. 3º, I, III).


Os novos padrões de conduta, na esfera civil, são iluminados por valores, tais como a dignidade da pessoa humana, justiça social, igualdade substancial, solidariedade, entre outros. Não existe mais uma rígida tipologia de condutas possíveis e condutas vedadas. Não, pelo menos, na órbita civil. As ações permitidas e as ações repudiadas são definidas em razão dos condicionamentos históricos, recebendo substancial influência de outros setores sociais, que penetram no sistema jurídico através dos princípios, que por sua vez carecem de concretização mediadora.


O ilícito civil, se perspectivado em termos contemporâneos, ostenta uma permeabilidade aos valores que é inédita aos olhos clássicos. Possui uma mobilidade que lhe permite transitar pelo sistema jurídico incorporando referências axiológicas e as traduzindo em sanções, em ordem a assegurar, de forma aberta e plural, a preponderância dos valores fundamentais no sistema do direito civil.


6. Analisando as excludentes: excludentes de ilicitude e excludentes de responsabilidade civil


Não se deve confundir excludentes de ilicitude (estado de necessidade, legítima defesa e exercício regular de direito) com as excludentes de responsabilidade civil (caso fortuito, força maior e culpa exclusiva da vítima).


As excludentes de ilicitude retiram a contrariedade ao direito da conduta, mas não isentam, de modo absoluto, o responsável pela reparação dos danos (no estado de necessidade o ato, apesar de lícito, é indenizável; na legítima defesa com erro na execução, embora lícita, gera o dever de indenizar os terceiros atingidos). Já as excludentes de responsabilidade civil, por romperem o nexo de causalidade, afastam o próprio dever de reparar os danos (durante a viagem de ônibus, o assalto à mão armada, que causa danos aos passageiros, é, segundo a jurisprudência, caso fortuito externo, e não gera responsabilidade da empresa de transporte).


É fundamental, para a clareza das noções, examinar as excludentes de responsabilidade civil, e como vem se dando a interpretação jurisprudencial em relação a elas. Pedimos licença para remeter o leitor interessado à nossa obra “Responsabilidade Civil” (São Paulo: Saraiva, 2008), oportunidade em que aprofundamos o tema.


7. Responsabilidade civil decorrente de atos lícitos: exceção legalmente admitida


É certo, como vimos no início do artigo, que a obrigação de indenizar os danos causados decorre, quase sempre, da prática de atos ilícitos. A ilicitude gera conseqüências. O comportamento contrário às prescrições normativas traz punições para o infrator, que vão desde sanções administrativas até a privação da liberdade, a sanção mais grave em nosso sistema, aplicada como resposta à infração de uma norma penal.


Em geral, cada ramo do direito traz especificidades ao estruturar os seus ilícitos. O ilícito penal, com sua tipicidade fechada, decerto não se confunde com o ilícito civil, cuja estrutura é aberta, permeável aos valores, e sem definição prévia de condutas vedadas. Embora existam diferenças, timbradas, quase sempre, pela gravidade da violação, é certo que não existem hiatos ontológicos entre os ilícitos. Todos eles são atos contrários ao direito, e, por isso, recebem sanções, que variam de acordo com a estrutura da ordem jurídica.


Porém cabe repetir a questão fundamental: apenas os atos ilícitos dão ensejo à responsabilidade civil, ou, ao contrário, também os atos lícitos fazem nascer o dever de indenizar? Dispõe o art. 188: “Não constituem atos ilícitos: I – os praticados em legítima defesa ou no exercício regular de um direito reconhecido; II – a deterioração ou destruição da coisa alheia, ou a lesão a pessoa, a fim de remover perigo iminente. Parágrafo único. No caso do inciso II, o ato será legítimo somente quando as circunstâncias o tornarem absolutamente necessário, não excedendo os limites do indispensável para a remoção do perigo”.


O Código Civil é expresso, peremptório, quanto à licitude dos atos em questão (legítima defesa, exercício regular de direito e estado de necessidade). Isso significa que quem agir acobertado por uma dessas excludentes de ilicitude estará imune a reparar os danos que causar?


Essa imunidade, digamos desde já, não existe. A ilicitude ou não do ato, por si só, não diz nada acerca da exclusão da obrigação de reparar. Tanto os lícitos, como os ilícitos, na ordem jurídica brasileira, podem dar ensejo à indenização. Naturalmente, o mais comum é que a responsabilidade civil surja como conseqüência de atos ilícitos, porém nada impede, em certos casos, que o legislador impute o dever de reparar como conseqüência de um ato lícito, à luz de certas especificidades, adiante comentadas.


7.1. Estado de necessidade (CC, art. 188, II c/c 929 e 930).


O estado de necessidade foi previsto no art. 188 do Código Civil: “Não constituem atos ilícitos: II – a deterioração ou destruição da coisa alheia, ou a lesão a pessoa, a fim de remover perigo iminente. Parágrafo único. No caso do inciso II, o ato será legítimo somente quando as circunstâncias o tornarem absolutamente necessário, não excedendo os limites do indispensável para a remoção do perigo”.


Digno de nota é a menção feita à “lesão a pessoa”, inexistente no Código de 1916. Temos agora expressamente, no plano do direito legislado, a afirmação de que o estado de necessidade pode ser praticado, não apenas contra coisas, mas também contra pessoas, a fim de remover perigo iminente.


O estado de necessidade é um daqueles clássicos casos em que o legislador está na encruzilhada – tem de optar por um dos caminhos, sendo os dois razoáveis, ou, sob outro ponto de vista, sendo os dois terríveis. Quem proteger? A vítima, que sofreu o dano? Ou o causador do dano, que, entretanto, nenhuma culpa teve?


7.1.1. Estado de necessidade sem que a pessoa lesada seja culpada pelo perigo


O legislador optou por proteger a vítima. Assim, se alguém, agindo em estado de necessidade, causar dano à pessoa ou à coisa, deve repará-los (art. 929). Se o motorista, dirigindo com prudência, vê, após uma curva, um veículo ultrapassando na contramão, e instintivamente gira a direção para a esquerda, subindo na calçada e atropelando alguém, estará obrigado a reparar os danos que a pessoa atropelada sofreu. A vítima, assim, será indenizada, ainda que nenhuma culpa tenha quem atropelou. O ato praticado em estado de necessidade, embora lícito (art. 188, II), obriga a indenizar (art. 929). Decidiu, a propósito, o STJ:


“A empresa cujo preposto, buscando evitar atropelamento, procede a manobra evasiva que culmina no abalroamento de outro veículo, causando danos, responde civilmente pela sua reparação, ainda que não se configura, na espécie, a ilicitude do ato, praticado em estado de necessidade” (STJ, REsp. 124,527, Rel. Min. Aldir Passarinho Júnior, 4a T., j. 04/05/00, p. DJ 05/06/00).


Pode, porém, o motorista do veículo, após indenizar a vítima (atropelado), exigir do condutor do veículo na contramão (causador do perigo) intentar a ação de regresso (art. 930). Também assim na jurisprudência, assegurando o STJ “direito de regresso contra o terceiro culpado pelo sinistro” (STJ, REsp. 124,527, Rel. Min. Aldir Passarinho Júnior, 4a T., j. 04/05/00, p. DJ 05/06/00).


No estado de necessidade, portanto, alguém, a fim de remover perigo iminente, destrói coisa alheia, ou causa lesão a outrem, quando as circunstâncias indiquem a absoluta necessidade de tais medidas, indispensáveis à remoção do perigo. Tal ato, já vimos, é lícito (art. 188, II), porém quem o pratica deverá indenizar o dono da coisa ou a pessoa lesada (art. 929).


Nesssa linha de ideias: “Responsabilidade civil. Transporte coletivo. Assalto. Estado de necessidade. Responde pelo resultado danoso a empresa cujo motorista pratica a ação em estado de necessidade, sob coação do assaltante, deixando a porta aberta do veículo que mantém em movimento, do que decorre a queda do passageiro” (STJ, REsp. 234.263, Rel. Min. Ruy Rosado de Aguiar, 4a. T., j. 02/12/99, p. DJ 14/02/00).


7.1.2. Estado de necessidade quando a pessoa lesada é culpada pelo perigo


Vimos que o causador do dano, ainda que agindo em estado de necessidade, estará obrigado a repará-los. O art. 929, porém, interpretado a contrario sensu, exclui essa reparação, se a vítima do dano foi culpada pelo perigo. Se alguém, em absurdo protesto, resolve atear fogo ao próprio corpo – como, lamentavelmente, ocorre vez por outra na Europa e no Oriente Médio –, as pessoas próximas podem investir contra o suicida, para evitar que a morte se consume. Se, nessa operação, causam danos (quebram braço da vítima, ao tentar segurá-la), ou destroem bens (quebram janela ou porta, de propriedade da vítima, para atingi-la) tais atos, praticados em estado de necessidade, não empenham responsabilidade civil, pois a culpada pelo dano foi, claramente, a própria vítima.


Da mesma forma, se o dono da coisa danificada é o culpado pelo perigo – tal como aconteceu no exemplo acima – ele não fará jus à reparação. Imagine-se que um sujeito sai para passear com seu cachorro, extremamente feroz. O cachorro, na rua, se solta, e parte para atacar uma criança. Alguém, que vê a cena, estando armando, atira contra o cachorro. Não estará obrigado a indenizar o dono do animal, pois este foi culpado pelo perigo (art. 929, a contrario sensu).


7.1.3. Qual o efeito civil da coisa julgada criminal que reconhece o estado de necessidade?


O art. 65 do Código de Processo Penal – o qual estatui que a sentença que reconhece o estado de necessidade, entre outras situações, faz coisa julgada no cível – não significa a exclusão da obrigação de reparar, pois os efeitos do estado de necessidade, em tema de reparação de danos, serão aqueles estatuídos pelas leis civis, as quais, explicitamente, a ele imputam, como conseqüência, a responsabilidade civil (arts. 929 e 930).


7.2. Legítima defesa (CC, art. 188, I, c/c parágrafo único do art. 930).


A legítima defesa, no entanto, não recebeu, do legislador, o mesmo tratamento do estado de necessidade. São institutos, para o direito civil, diferentes, e merecem tratamentos diversos. No estado de necessidade, a pessoa lesada pode não ter nenhuma relação com o perigo criado, e assim seria injusto deixá-la desamparada. Pense-se na hipótese da vítima, atropelada porque o motorista desviou seu carro de outro motorista na contramão. Decerto o causador do dano não tem culpa; muito menos, porém, teria a vítima, que se viu gravemente atingida pelo acidente. O motorista, quando menos, assumiu o risco, e o atropelado não pode ser esquecido à própria sorte.


Na legítima defesa, contudo, bem diferentes se põem os termos do problema. Aqui há uma agressão ilícita, contra a qual alguém, injustamente agredido, reage. Essa reação, desde que razoável e proporcional, não empenha responsabilidade civil de quem reagiu, ainda que tenha causado danos ao agressor.


Prescreve o art. 188 do Código Civil: “Não constituem atos ilícitos: I – os praticados em legítima defesa (...)”. Não há, porém, em relação à legítima defesa, regra semelhante ao art. 929 (o qual imputa ao causador do dano, ainda que agindo em estado de necessidade, o dever de reparar os danos causados). Assim, quem, se defendendo de injusta agressão, causa danos ao agressor, sem que tais danos resultem de excessos, não responderá por eles.


Se, digamos, alguém, saindo com a namorada de um restaurante, é surpreendido por três assaltantes, que objetivam colocar o casal na mala do carro, eventual reação que cause danos aos assaltantes – embora desaconselhável segundo os especialistas em segurança – não importará dever de indenizá-los, ou às suas famílias, em caso de morte (o sujeito assaltado, se, reagindo, matar um criminoso, não ficará obrigado a pagar pensão à sua família – dano material – nem indenização compensatória – dano moral).


Da mesma forma, se alguém, em cidade com altos índices de criminalidade, é parado, por policiais, em blitz noturna, porém, quando diminui a velocidade, verifica se tratar de uma falsa blitz forjada por bandidos, e dispara com o carro, atropelando e matando um dos criminosos, não há conseqüências civis desse dano, pois o seu causador agiu em legítima defesa.


A legítima defesa é exceção. É uma forma de justiça de mão própria, que o Estado, excepcionalmente, admite. O exercício arbitrário das próprias razões é crime (art. 345, CP). Em linha de princípio, a ninguém é dado realizar, pela força, suas pretensões, ainda que asseguradas pela ordem jurídica. Na legítima defesa, no entanto, em face da premente necessidade, o legislador afastou a contrariedade ao direito de quem se defende, ainda que, em se defendendo, cause danos ao agressor. Tal ato não configura ilícito, penal ou civil, e não faz surgir, para quem agiu sob o manto da legítima defesa, a obrigação de reparar os danos causados.


7.2.1. Dano causado ao próprio agressor


Para que as afirmações, acima feitas, sejam verdadeiras, devemos ter subjacente ao raciocínio a premissa que os danos foram causados ao agressor. Foi contra esse que se agiu em legítima defesa. É contra o autor da injusta agressão que a ordem jurídica faculta a defesa, e não contra terceiros.


Assim, a “absolvição criminal com base em legítima defesa exclui a ‘actio civilis ex delicto’, fazendo coisa julgada no cível. A absolvição no juízo criminal, pelo motivo acima apontada, posterior à sentença da ação civil reparatória por ato ilícito, importa em causa superveniente extintiva da obrigação (...)” (STJ, REsp. 118.449, Rel. Min. Cesar Asfor Rocha, 4a T., j. 26/11/97, p. DJ 20/04/98).


Se, durante festa de carnaval, um sujeito bêbado vem correndo com uma faca na direção de alguém, e essa pessoa, para se proteger, joga uma garrafa no agressor, causando-lhe hemorragia, esse dano, ainda que grave, não será indenizado por quem o provocou, pois agiu para se defender, de forma legítima.


A legítima defesa, portanto, se praticada contra o agressor, não gera, para esse, direito à indenização.


7.2.2. Proporcionalidade na reação


A reação deve ser proporcional. A agressão gera, para a vítima, o direito de se defender, não o direito de agredir o ofensor. Bem por isso se sublinha a necessidade da proporcionalidade na reação. Eventual excesso não será enxergado como legítima defesa, mas como ilícito, com as conseqüências civis e penais pertinentes.


No exemplo do casal que, se defendendo dos seqüestradores, causa-lhes danos (disparo de arma de fogo, por exemplo) tal ato, em legítima defesa, não empenhará o dever de indenizar. Se, porém, dominados os seqüestradores, ao invés de se chamar a polícia, chamam-se os amigos, que surram os bandidos até matá-los, estará configurado o ilícito civil (e penal), podendo os familiares do seqüestrador exigir ressarcimento.


A proporcionalidade na reação, nesse contexto, é fundamental para colorir de legitimidade a conduta de quem age em legítima defesa. Se alguém, em ônibus, percebe que uma senhora tenta, disfarçadamente, furtar-lhe a carteira, e, revoltado com a situação, saca uma arma e desfere vários tiros contra a senhora, não haverá, obviamente, legítima defesa, mas ato ilícito, com as conseqüências próprias de uma agressão.


Para que tenhamos, devidamente caracterizada, a legítima defesa, é fundamental que concorram, simultaneamente, três requisitos: a) agressão atual ou iminente; b) que tal agressão seja injusta; c) que os meios empregados na defesa sejam proporcionais à agressão.


Esclareceu, a propósito, o STJ: “Nos termos do art. 25 do Código Penal, ‘entende-se em legítima defesa que, usando moderadamente dos meios necessários, repele injusta agressão, atual ou iminente, a direito seu ou de outrem’. Portanto, para a caracterização dessa excludente de ilicitude mister a presença dos seguintes requisitos, a saber: a) que haja uma agressão atual ou iminente; b) que ela seja injusta; c) que os meios empregados sejam proporcionais à agressão. A ausência de quaisquer desses requisitos exclui a legítima defesa” (STJ, REsp. 170.563, Rel. Min. Sálvio de Figueiredo Teixeira, 4a T., j. 16/03/99, p. DJ 24/05/99).


Assim, portanto, se um universitário, inconformado com a nota que lhe foi atribuída pelo professor, o agride fisicamente, e o professor revida com disparo de arma de fogo, a agressão, embora injusta, foi repelida com uma força desproporcional. Naturalmente, as circunstâncias é que definição, nos casos concretos, a razoabilidade da resposta.


Sempre que a agressão puder ser repelida, ou dominada, com determinada reação, o que ultrapassá-la deve ser enxergado como nova agressão, e não como defesa. Repita-se, porém, que o caso concreto, e suas circunstâncias, podem evidenciar que o meio empregado era o único de que dispunha a vítima, ou que, muito nervosa, não soube bem ponderar os limites de sua reação. Tais alegações não devem ser afastadas a priori, podendo redimensionar os contornos do caso.


De toda sorte, vingança não é legítima defesa. Digamos que dois colegas de faculdade nutrem ódio recíproco. Um deles, certo dia, aguarda o outro, na saída das aulas, com um cão feroz, devidamente treinado, que recebe comando para atacar o desafeto. Este, entrando no carro, consegue se livrar da fera. Depois, o agredido vai até em casa, pega uma arma, volta ao local, e desfere vários tiros contra o dono do animal. Não houve legítima defesa, e sim excesso penal e civilmente punível.


7.2.3. Dano causado em terceiro


As afirmações até aqui feitas em relação à legítima defesa estão relacionadas com um pressuposto básico: o de que o dano foi sofrido pelo agressor. A legítima defesa isenta quem sob seu manto age da obrigação de reparar os danos, é certo. Mas tal isenção apenas ocorrerá se danos forem experimentados por quem injustamente agrediu outrem. Quando os danos são sofridos por terceiro, outras serão as conseqüências jurídicas, como adiante veremos.


7.2.3.1. Por erro de execução (aberratio ictus)


É possível que alguém, agindo em legítima defesa, lesione, não o agressor, mas terceiro, que não está relacionado com a injusta agressão. Pensemos no exemplo, oferecido acima, do bêbado, em festa de carnaval, que vem correndo com uma faca na direção de alguém, e essa pessoa, para se proteger, joga uma garrafa no agressor. Se, por infelicidade, a garrafa, atirada como defesa, atinge, não o agressor, mas uma senhora, que se encontrava próxima (aberratio ictus), causando-lhe danos estéticos, quem a atirou responderá pelos danos, e não poderá argüir legítima defesa.


A afirmação de que quem age em legítima defesa está isento da obrigação de reparar os danos, portanto, apenas é verdadeira se considerarmos o agressor como a pessoa que os sofre. Se a vítima, se defendendo, causa danos ao agressor, não estará obrigada a repará-los; se, porém, agindo em legítima defesa, causa danos a terceiros, deverá por eles responder.


O mesmo ocorreria no exemplo, também já aludido, do casal que é surpreendido por seqüestradores, que objetivam colocá-los na mala do carro. Eventual reação – tiros, por exemplo – poderão atingir terceiros, e não os assaltantes. Se tal circunstância lamentável ocorrer, o dano deverá ser suportado por quem reagiu, e não lhe socorrerá a alegação de que agiu em legítima defesa. Penalmente, poderemos ter excluída a aplicação da pena; civilmente, no entanto, haverá obrigação de reparar os danos.


A jurisprudência trilha o caminho exposto: “Responsabilidade civil. Legítima defesa. ‘Aberratio ictus’. O agente que, estando em situação de legítima defesa, causa ofensa a terceiro, por erro na execução, responde pela indenização do dano, se provada no juízo cível a sua culpa” (STJ, REsp. 152.030, Rel. Min. Ruy Rosado de Aguiar, 4a T., j. 25/03/98, p. DJ 22/06/98).


7.2.3.2. Erro de execução em legítima defesa de terceiro


Analisamos, no tópico anterior, a hipótese de alguém, em legítima defesa própria, errar em sua execução (aberratio ictus), e atingir terceiros, causando danos. Tal configuração responsabilizará quem agiu em legítima defesa, não havendo, portanto, na espécie, excludente de responsabilidade civil.


Há, porém, outra possibilidade. Alguém, agindo na defesa de terceiro, errar na execução, e atingir terceiros. Responderá da mesma forma como quem age em legítima defesa própria?


Se, na legítima defesa de terceiro, o injusto agressor sofrer danos, não será indenizado, da mesma forma que não seria se a legítima defesa fosse própria. Se alguém vê um morador de rua sendo espancado por três homens, intervém em sua defesa, e ao defendê-lo quebra alguns dentes de um dos agressores, este não poderá, obviamente, exigir reparação. Na legítima defesa de terceiro, os danos causados por quem age em legítima defesa, contra o injusto agressor, não são indenizáveis.


É possível, no entanto, como perguntamos no penúltimo parágrafo, que alguém, agindo em legítima defesa de terceiro, cause danos a outros que não os agressores. Se alguém, em boate, vê um covarde espancamento, e para evitar a morte do espancado arremessa, nos agressores, um extintor de incêndio, errando o alvo e atingindo um dos garçons da boate, que tem traumatismo craniano, haverá responsabilidade civil?


Sim. Quem, agindo na defesa do espancado (terceiro), causa danos a outras pessoas, que não os agressores, deverá responder pelos danos causados. Porém terá ação regressiva contra quem estava sendo agredido. É o que prescreve o parágrafo único do art. 930: “A mesma ação competirá contra aquele em defesa de quem se causou o dano (art. 188, inciso I)”.


Resumindo, a legítima defesa, em regra, não enseja indenização, se quem sofreu o dano foi o agressor. Porém, se quem sofreu o dano foi terceiro, que não o agressor, cabe reparação. E quem pagará? Aquele que agiu em legítima defesa, própria ou de terceiro. Se agiu em legítima defesa própria, e por erro na execução (aberratio ictus) atingiu terceiro, responderá, ainda que possa, em ação regressiva, cobrar do agressor o que pagou.


E se agiu em legítima defesa de terceiro? Nesse caso também responde, diretamente, perante a pessoa lesada, quem agiu em legítima defesa, ainda que possa, em regresso, cobrar da pessoa em cuja defesa se agiu.


Decidiu, nessa linha de idéias, o STF: “Responsabilidade civil do Estado. Caracterização. Morte causada a particular por agente da Polícia Rodoviária em serviço. Irrelevância, nas circunstâncias do caso, de ter sido o servidor absolvido por legítima defesa de terceiro, se a agressão a esse não atribuída à vítima, mas a outrem, não atingido”(STF, RE 229.653, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, 1a T., j. 12/06/01, p. DJ 10/08/01).


7.2.3.3. Legítima defesa putativa


A legítima defesa putativa – a equivocada crença, por parte do autor do dano, na existência de uma situação na verdade inexistente – é uma categoria que nenhuma relevância apresenta no direito civil, em tema de reparação de danos. Se, sob o ângulo penal, tal alegação é digna de nota, pois pode afastar a culpabilidade, não apresenta, para o civilista, interesse.


E a ausência de tal interesse está em que, mesmo que alegada e provada, subsistirá, para quem sob tal crença agiu, a obrigação de reparar os danos, do mesmo modo que estaria se inexistisse a legítima defesa putativa.


Se alguém, supondo que uma pessoa próxima está sendo assaltada, agride o suposto assaltante, deverá indenizá-lo, se ficar provado, posteriormente, que era um amigo do “assaltado”. Essa, pelo menos, é a posição sólida da doutrina sobre o tema.


Embora o registro, acima feito, seja pacífico, assim em doutrina como na jurisprudência, caberá indagar de sua razoabilidade, em certos casos. Tomemos o exemplo do casal que, saindo do restaurante, é abordado por seqüestradores, que objetivam colocá-los na mala do carro. O seqüestrado, desesperado, agride o seqüestrador com uma chave inglesa, e provoca neste traumatismo craniano. Descobre-se, logo depois, que o seqüestrador era um amigo do casal, em brincadeira de péssimo gosto. Estará o “seqüestrado” obrigado a indenizar o agredido? Se o agredido falecer, o “seqüestrado” deverá pensão à família, e danos morais? Verifica-se, no horizonte do direito civil, dificuldades, se quisermos nos apegar aos critérios dos séculos passados.


A solução, segundo cremos, estará em verificar, objetivamente, o quadro fático. Se o agressor não tinha, minimamente, condições para desconfiar da farsa, a indenização deverá ser afastada (culpa exclusiva da vítima), ou reduzida substancialmente (art. 945: “Se a vítima tiver concorrido culposamente para o evento danoso, a sua indenização será fixada tendo-se em conta a gravidade de sua culpa em confronto com a do autor do dano”).


Se, contudo, a agressão decorreu de negligência do agressor, que mal apreciou os fatos, vendo perigo onde não havia, nem havia razões razoáveis para se crer na sua existência, a indenização não poderá excluída, respondendo, por sua negligência, quem engendrou, mentalmente, uma situação inexistente, e assim agindo causou danos a terceiros.


7.3. Exercício regular de um direito (CC, art. 188, I).


O abuso de direito (art. 187), segundo disposição expressa do Código Civil (art. 927), obriga a indenizar, sem prejuízo de outras sanções. Se o abuso de direito – também chamado exercício irregular de direito – enseja reparação, o exercício regular, ao contrário, não pode empenhar responsabilidade de quem assim age.


Estatui o art. 188: “Não constituem atos ilícitos: I – os praticados em legítima defesa ou no exercício regular de um direito reconhecido (...)”. Não houve, nesse ponto, novidade, em relação ao Código Civil de 1916. Repetiu-se, no atual art. 188, I, o dispositivo do art. 160, I, do Código revogado. O STJ já teve oportunidade de afirmar: “Não há conduta ilícita quando o agente age no exercício regular de um direito” (STJ, REsp. 303.396, Rel. Min. Barros Monteiro, 4a T., j. 05/11/02).


O Código Civil, em relação ao exercício regular de direito, da mesma forma que o fez em relação à legítima defesa, disse da licitude do ato, e não previu, em nenhum momento, que o ato praticado no exercício regular de um direito provocaria o dever de indenizar (como o fez em relação ao estado de necessidade, no art. 929).


A dificuldade estará em caracterizar a regularidade ou irregularidade do exercício. Se regular, será um ato lícito, sem ensejar reparação. Se irregular, será um ato ilícito, que poderá dar causa à reparação dos danos. Serão circunstanciais, e dependerão dos respectivos contextos, a definição da regularidade ou não do exercício.


A jurisprudência enfrenta, com freqüência, situações que devem ser definidas como exercício regular de direito, ou, ao contrário, como abuso de direito (exercício irregular). A imputação de fato criminoso, diz a jurisprudência, é exercício regular de direito. Se, porém, as circunstâncias demonstram que a imputação é abusiva, esvaziada de propósitos legítimos, cabe reparação, eis que se trata de abuso de direito.


Tudo dependerá das circunstâncias. Cabe verificar se houve abuso na comunicação. Se, de acordo com as circunstâncias, o abuso foi doloso, eivado de má-fé, o comunicante certamente responderá, pois seu ato é ilícito (art. 186 ou 187), ensejando reparação.


Nesse sentido, “a apresentação de notícia-crime perante a autoridade competente, com a respectiva indicação do acusado, constitui, em regra, exercício regular de direito e, portanto, não sujeita o denunciante à responsabilização por danos sofridos pelo acusado. Poderá o denunciante ser responsabilizado, entretanto, se o seu comportamento doloso ou culposo contribuiu de forma decisiva para a imputação de crime não praticado pelo acusado” (STJ, REsp. 470.365, Rel. Min. Nancy Andrihi, 3a T., j. 02/10/03, p. DJ 01/12/03).


Pode não haver, porém, prova de má-fé (prova difícil e incerta), mas defluir, das circunstâncias, indícios de abuso. O empregador, por exemplo, que sem dados concretos demite, de modo vexatório e humilhante, um empregado, chamando a polícia para levá-lo, conferindo ampla publicidade ao caso, comete abuso. Naturalmente, não sendo julgada procedente a pretensão punitiva estatal, caberá reparação, sem que se precise provar o dolo do empregador, pois o meio escolhido – gravoso e atentatório à dignidade – provocou severos danos que exigem reparação.


Já se, de acordo com os dados concretos, não houve má-fé, nem tampouco abuso na comunicação, não se pode responsabilizar civilmente quem a fez. Trata-se de exercício de direito que, desde que regular, não é ato ilícito, nem obriga à reparação dos danos causados. “Responsabilidade civil. Indenização. Dano moral. Imputação de fato criminoso. Ausência de má-fé. Exercício regular de direito. Precedentes. Recurso acolhido em parte. I – Salvo casos de má-fé, a ‘notitia criminis’ levada à autoridade policial para apuração de eventuais fatos que, em tese, constituam crime, em princípio não dá azo à reparação civil, por constituir regular exercício de direito, ainda que posteriormente venha a ser demonstrada a inexistência de fato ilícito” (STJ, REsp. 468.377, Rel. Min. Sálvio de Figueiredo Teixeira, 4a T., j. 06/05/03, p. DJ 23/06/03).


De idêntico modo: “Vencido o primeiro cheque e não pago, é permitido ao credor considerar vencidos antecipadamente os posteriores, apresentando-os desde logo ao banco sacado. Pedido de instauração de inquéritos policiais que constitui exercício regular de direito” (STJ, REsp.299.573, Rel. Min. Sálvio de Figueiredo Teixeira, 4a T., j. 19/08/03, p. DJ 24/05/04).


O exercício regular, portanto, afasta, para quem assim age, a responsabilidade civil. Tal exercício, contudo, deverá ser aferido segundo os padrões de razoabilidade social, à luz das legítimas expectativas sociais. A propriedade, que a tantos abusos deu causa, no passado, ao argumento de que se estava a utilizar um direito, deve, aos olhos contemporâneos, ser lida de modo a abranger, também, os interesses dos não proprietários. É só um exemplo, dentre tantos possíveis no direito civil contemporâneo.


Essa excludente exige o exame da regularidade do exercício do direito. Um direito, apenas por estar formalmente assegurado, não autoriza seu titular a provocar danos, de modo socialmente perverso. Assim, por exemplo, é “inconcebível que empresas comerciais, na proteção aos seus interesses comerciais, violentem a ordem jurídica, inclusive encarcerando pessoas em suas dependências sob a suspeita de furto de suas mercadorias (STJ, REsp. 265.133, Rel. Min. Sálvio de Figueiredo Teixeira, 4a T., j. 19/09/00, p. DJ 23/10/00).


O fundamental, e esclarecedor, no caso, é indagar se o exercício do direito foi regular. Se foi, ainda que provoque danos, não ensejará reparação. Se o exercício foi irregular, é ato ilícito (art. 187), e como tal empenha responsabilidade civil (art. 927), sem prejuízo de outras sanções. Porém, mal andaríamos se achássemos, amparados no velho direito romano (nullus videtur dolo facere, qui iure suo utitur), que quem usa um direito está livre para causar danos. O direito subjetivo é uma faculdade, juridicamente assegurada ao titular, em conformidade com certos fins econômico-sociais. O direito positivo não é, decisivamente, uma licença para abusos. Ficou para trás, no museu das idéias, a concepção, irrestrita e absoluta, do direito subjetivo como um poder incondicionado, sujeito apenas aos humores e arbítrios do titular.


O magistrado, portanto, ao analisar o caso concreto, deve, à luz da lógica do razoável, proceder a uma imersão social do exercício do direito, ponderando-o com os demais valores atinentes ao caso, e daí extraindo a norma que contemple uma convivência possível entre as situações subjetivas.


7.4. Estrito cumprimento do dever legal - O estrito cumprimento de dever legal, embora não mencionado pela lei civil, inclui-se, segundo a doutrina, no conceito de exercício regular de direito. Afinal, conforme se pondera, quem age, corretamente, no cumprimento de dever legal está, de certo modo, no exercício regular de direito.


Como o estrito cumprimento de dever legal pressupõe um agente público (no sentido amplo) é preciso bem separar as responsabilidades. Se, digamos, um policial, durante troca de tiros com assaltante, no estrito cumprimento do dever legal, fere alguém que passava pelo local, o Estado responde, objetivamente, pelo dano (art. 37, § 6º, CF/88). Para, em ação regressiva, ser ressarcido, o Estado precisará provar a culpa do policial, pois a alegação de estrito cumprimento do dever legal o eximirá da reparação.


Não se pode, porém, admitir – como por vezes acontece – que o estrito cumprimento do dever legal seja usado como manto para cobrir abusos e arbitrariedades. Sempre que tais situações se configurarem, deve-se afastar a excludente, responsabilizando, pessoalmente, os agentes que procederam de modo abusivo.


Nesse sentido caminha a jurisprudência do STF: “Responsabilidade objetiva do Estado em face da presunção de segurança que o agente proporciona ao cidadão, a qual não é elidida pela alegação de que este agiu com abuso no exercício das suas funções. Ao contrário, a responsabilidade da administração pública é agravada em razão do risco assumido pela má seleção do servidor” (STF, RE 135.310, Rel. Min. Maurício Corrêa, 2a T., j. 10/11/97, p. DJ 27/02/98).


8. Excludentes de ilicitude: disciplina heterogênea


Percebe-se, portanto, que a disciplina legal das excludentes de ilicitude civis, longe de serem unívocas, são matizadas, apresentando particularidades de acordo com espécie da excludente, e da pessoa lesada. No estado de necessidade, quem age sob o manto de tal excludente, embora pratique um ato lícito, deverá reparar os danos causados, se a pessoa lesada, ou o dono da coisa, não forem culpados do perigo. Portanto, a absolvição, no juízo criminal, fundada em estado de necessidade, não significa, no âmbito cível, a ausência do dever de reparar (digamos que alguém, de forma absurda, deixa seu carro parado, no meio da estrada, depois de uma curva, e com isso obriga o motorista prudente, que vem em sentido contrário, a avançar para a contramão, causando mortes. Nesta hipótese, a absolvição criminal do motorista que avançou para a contramão não significa que ele não deva reparar os danos).


Na legítima defesa, ao contrário, quem age sob tal excludente não fica obrigado a reparar os danos causados ao agressor. Se, porém, por erro na execução (aberratio ictus), atingir terceiros, deverá indenizá-los. Se a legítima defesa for de terceiros, e houver erro na execução, da mesma forma: quem agiu em legítima defesa deverá responder pelos danos.


Em todos os casos citados, há, no entanto, direito de regresso. Quem, agindo em estado de necessidade, causa danos a outrem, poderá, depois de ressarci-los, voltar-se contra quem causou o perigo (o motorista que, desviando de carro na contramão, atinge um carro estacionado, deverá reparar esse dano, mas poderá, em regresso, cobrar do condutor do veículo na contramão, causador do perigo).


Também na legítima defesa, se houver erro na execução, como visto, quem assim agiu responde pelos danos causados. Poderá depois cobrar do agressor (quem, para se defender do bêbado armado, atira contra ele um objeto, mas atinge quem estava atrás, deverá indenizá-la, embora possa, regressivamente, exigir o que pagou do bêbado, injusto agressor).


Se o erro na execução foi em legítima defesa de terceiro, quem praticou o ato defensivo deve indenizar as vítimas do dano; tem, entretanto, ação regressiva contra a pessoa em favor de quem interveio (quem presencia um espancamento, e intervém para evitar a morte do espancado, pode – com um tiro, digamos – atingir terceiro, que não os agressores. Deverá, nessa linha, indenizar o terceiro atingido, embora possa, depois, cobrar o que pagou da pessoa que estava sendo espancada). Na legítima defesa putativa, em princípio, não há exclusão da responsabilidade, porém é fundamental analisar, circunstancialmente, o caso, para não redundar em injustiças e reparações divorciadas da equidade.


*Membro do Ministério Público Federal (Procurador da República). Doutor em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Mestre em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco. Professor de Direito Civil da Escola Superior Dom Helder Câmara (2003-2018). Professor da Escola Superior do Ministério Público da União - ESMPU.




A doutrina nacional, em sua amplíssima maioria, identifica ilícito civil com responsabilidade civil. Imagina, portanto, que ilícitos civis são aqueles previstos no Código Civil (arts. 186 e 187), cujo efeito é, sempre e apenas, o dever de indenizar (art. 927). Tal visão, segundo cremos, é parcial e não dá conta da realidade do mundo jurídico. Na verdade, bem vistas as coisas, os ilícitos civis perfazem um rico gênero, variado e multiforme, cujos contornos não aceitam a tradução dogmática oferecida pela doutrina clássica, ainda hoje repetida nas novas edições. Pontes de Miranda, com a antevisão que o distinguia, percebeu, antes de todos, que os ilícitos civis são um gênero com múltiplas espécies, cada uma delas com requisitos e efeitos diferenciados. Marcos Bernardes de Mello, em sua Teoria do Fato Jurídico – trilogia que adquiriu, por seus méritos, lugar entre os clássicos da literatura jurídica nacional -, sistematizou e problematizou, relativamente aos ilícitos, a obra de Pontes, ocupando a parte final do primeiro volume – Teoria do Fato Jurídico (Plano da Existência). Propusemos, em outra oportunidade - Teoria dos Ilícitos Civis. Belo Horizonte: Del Rey, 2003 -, uma nova abordagem do tema, fundada, precipuamente, na classificação à luz de três critérios distintos (suporte fático abstrato; relação jurídica violada; efeitos produzidos).




LOBO, Paulo Luiz Netto, "Constitucionalização do Direito Civil". Direitos e Deveres, n. 3, jul./dez. Maceió: Imprensa Universitária, 1998, p. 92.


Pertinentes as observações de Weinberger: "Nos dias de hoje, sob o influxo das idéias democráticas, ninguém mais crê na sacralidade do direito ou vê na tradição uma justificação suficiente das instituições sociais. Estamos convencidos de que o homem pode modelar e remodelar o seu sistema político e que as disposições jurídicas e as instituições sociais devem ser examinadas criticamente e justificadas sobre a base de análises funcionais e valorativas" (WEINBERGER, Ota, "Politica del diritto e istituzioni". Il diritto come istituzione, Neil MacComick e Ota Weinberger, Milano: Giuffrè, 1990, p. 287).


Vale a citação, ainda que longa, de Arnaldo Vasconcelos: "A permanência jurídica se manifesta, em toda sua plenitude, no setor específico das codificações. E, aí, especialmente em matéria de Direito Civil, tido por protótipo do conservadorismo jurídico. O caso de maior representatividade é o do Código Civil francês de 1804, que nasceu num país agrícola e continua servindo a uma potência atômica. Nosso Código Civil já passou dos sessenta e o Comercial festejou seu centenário há vinte e cinco anos. Por isso já se disse, não sem ironia, que em Direito os vivos são regidos pela vontade dos mortos". (Teoria da Norma Jurídica, São Paulo: Malheiros, 1993, p. 144).


O século dezenove foi pródigo em generalizações, amplas construções teóricas e esquemas abstratos. (MEAD, George H., Movements of thougt in the nineteenth century. Chicago: The University of Chicago Press, 1972).


CAMPILONGO, Celso Fernandes, “Teoria do Direito e Globalização Econômica”. O Direito na Sociedade Complexa. São Paulo: Max Limonad, 2000, p. 142.


CAMPILONGO, Celso Fernandes, Direito e Democracia. São Paulo: Max Limonad, 1997, p. 51.


Nelson Saldanha: "Isto sem embargo do fato de que o conhecimento do Direito, no plano empírico (incluindo-se aí a leitura direta das normas vigentes), não conduz, pelo menos como resultado imediato, à verificação do caráter 'público' ou 'privado' das regras e dos institutos". (Estudos de Teoria do Direito. Belo Horizonte: Del Rey, 1994, p. 51).


Direito e Estado no Pensamento de Emanuel Kant. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1997, p. 84.


Sobre a questão da concepção privatística apresentar-se como sendo o direito, SALDANHA, Nelson, "Conceituações do direito: tendência privatizante e tendência publicizante". Estudos de teoria do direito. Belo Horizonte: Del Rey, 1994, p. 44.


"Trata-se de uma mudança nos axiomas. Os elementos básicos, estruturantes do sistema, aqueles a partir dos quais se inicia a lógica da inferência no juízo decisório, se encontravam no Código. Agora, percebe-se que estão no Código, na Constituição, nos tratados, no costume, que são as fontes onde encontramos as normas fundamentais" (LORENZETTI, Ricardo Luis, Fundamentos do Direito Privado. Trad. Vera Maria Jacob de Fradera São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998, p. 79).


VILHENA VIEIRA, Oscar. "A Constituição como reserva de justiça". Lua Nova - Revista de Cultura Política. n. 42, São Paulo: Cedec, 1997, p. 96.


Não deixa de ser reveladora a origem do vocábulo crise, do grego krísis, que significa, primeiramente, a faculdade de distinguir. As épocas de crise servem, em grande medida, para redimensionamento de perspectivas. Por mais paradoxal que possa parecer, a idéia de crise, que deveria representar um momento de contraste com a normalidade habitual, tornou-se uma constante teórica, sobretudo após a Revolução Francesa.


SALDANHA, Nelson, Ordem e Hermenêutica. Rio de Janeiro: Renovar, 1992, p. 1.


PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Fontes e Evolução do Direito Civil Brasileiro. Rio de Janeiro: Pimenta de Mello, 1928, p. 77.


LOBO, Paulo Luiz Netto, O Direito de Família e a Constituição de 1988. Carlos Alberto Bittar (Organizador). São Paulo: Saraiva, 1989.


SOMLÓ, Felix, Juristische grundlehre, 1927, p. 8/10, Apud. Lourival Vilanova, Estruturas Lógicas e o Sistema do Direito Positivo. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1977, p. 132.


VILANOVA, Lourival, Estruturas Lógicas e o Sistema do Direito Positivo. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1977, p. 129.


Teoria Pura do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 1994, p. 121/128.


Kelsen, já no primeiro capítulo de sua Teoria Pura do Direito, esclarece que sua teoria é uma teoria do direito positivo em geral, e não de uma ordem jurídica específica. Discutiu-se, em doutrina, se a cada sistema de normas, conceptualmente dado, corresponderia uma exposição sistemática, distinta das demais. Ou seja, se haveria tantas ciências dogmáticas quantos sistemas de direito positivos. (SOMLÓ, Felix, Juristische Grundlehre, p. 2/10, Apud. VILANOVA, Lourival, Estruturas Lógicas e o Sistema do Direito Positivo. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1977, p. 131). Seria a dogmática uma ciência cultural individualizadora, por envolver valores, como quer Radbruch, ou haveria tantas ciências quantos ordenamentos jurídicos houvesse? Pontes de Miranda e Lourival Vilanova acreditam que há uma só ciência, com conceitos e proposições universais, que, "relativamente à matéria empiricamente dada, funcionam como 'conceitos fundamentais'". (Estruturas Lógicas e o Sistema do Direito Positivo. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1977, p. 132)


VILANOVA, Lourival, Estruturas Lógicas e o Sistema do Direito Positivo. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1977, p. 22.


Defendendo posição oposta, ENGISH, Karl, Introdução ao Pensamento Jurídico. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1988, p. 7.


VILANOVA, Lourival, Estruturas Lógicas e o Sistema do Direito Positivo. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1977, p. 25.


VILANOVA, Lourival. Estruturas Lógicas e o Sistema do Direito Positivo. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1977, p. 127: “i) critérios que permitam decidir se uma dada proposição pertence ou não ao sistema; ii) coerência interna, isto é, compatibilidade entre os elementos proposicionais integrantes do sistema; iii) completude – o sistema contém uma proposição ou a contraditória (segundo R. Blanché, esse requisito meta-sistemático é ‘fondée sur le principe du tiers exclu’; Blanché, L’Axiomatique, pág. 42). No mesmo sentido de Kelsen, V. Radbruch, Introducción a la Ciencia del Derecho, p. 254)”.


Nelson Saldanha: “A distinção entre Direito-fenômeno e Direito-doutrina, nem sempre bastante nítida nas páginas do Sistema (apesar de óbvia), torna-se clara no Tratado, mas não propriamente explícita”. (Estudos de Teoria do Direito. Belo Horizonte: Del Rey, 1994, p. 33)


Para Carlos Cossio, foi Kelsen quem criou a lógica jurídica, entendida esta como a lógica do dever ser: "El descubrimiento de la lógica jurídica es el mérito sin par de Kelsen. Kelsen descubre la lógica jurídica com una amplitud comparable a la de Aristóteles para la lógica del ser". (Teoría Egológica del Decrecho y el Concepto Jurídico de Libertad. Buenos Aires: Abeledo Perrot, 1964, p. 379).


VASCONCELOS, Arnaldo. Teoria da Norma Jurídica, São Paulo: Malheiros, 1993, p. 79.


Georg Simmel: “O dever-ser (das Sollen) é uma categoria que, aditada ao significado real duma representação, determina a sua importância relativa para a praxis... Não há qualquer definição do dever-ser... O dever ser é um modo de pensamento como o futuro e o pretérito”. (Apud. Introdução ao Pensamento Jurídico, ENGISH, Karl, Introdução ao Pensamento Jurídico. Lisboa: Calouste Gulbenkian, sem indicação do ano, p. 37).


KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 1994, p. 5


KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 1994, p. 6.


BERNARDES DE MELLO, Marcos. Teoria do Fato Jurídico. São Paulo: Saraiva, 1991, p. 27.


KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 1994, p. 65


Um dos aspectos mais criticados da teoria kelseniana talvez tenha sido exatamente essa divisão da norma em primária e secundária, sendo a primária a que estabelece a sanção, esvaziando a importância da norma que estabelece o dever. Norberto Bobbio alterou os termos da questão, reservando para a norma primária a norma que estabelece o que deve e o que não deve ser feito. Também assim Lourival Vilanova. Em obra publicada postumamente (Teoria Geral das Normas), contudo, o próprio Kelsen reviu sua concepção, reformulando os conceitos e empregando o termo norma secundária para aludir à norma sancionadora.


Lourival Vilanova, “A primeira parte da proposição jurídica completa (que se constitui de norma primária e norma secundária) é composta de hipótese e tese. A hipótese é descritiva de fato de possível ocorrência – o fato jurídico recortado sobre o suporte fáctico (Pontes de Miranda) – mas a tese, normativamente vinculada à hipótese, tem estrutura interna de proposição prescritiva”. (Estruturas Lógicas e o Sistema do Direito Positivo. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1977, p. 54).


BERNARDES DE MELLO, Marcos. Teoria do Fato Jurídico. São Paulo: Saraiva, 1991, p. 29. Este autor inclui, dentre os “não-sancionistas”, além de Pontes de Miranda, Larenz e Von Tuhr.


SILVA PEREIRA, Caio Mário da; Instituições de Direito Civil. Rio de Janeiro: Forense, 2000, v. I, p. 415.


RÁO, Vicente. Ato Jurídico. São Paulo: Malheiros, 1995, p. 30


PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Rio de Janeiro: Borsoi, 1954, t. II, p. 184.


Marcos Bernardes de Mello, Teoria do Fato Jurídico. São Paulo: Saraiva, 1991, p. 93.


LOBO, Paulo Luiz Netto. Do contrato no Estado Social. Maceió: Edufal, 1983, p. 128.


Enneccerus, Tratado de Derecho Civil. v. 1. Barcelona: Bosch, 1955, t. II, p. 128.


PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de Direito Privado. Rio de Janeiro: Borsoi, 1954, t. II, p. 204.


PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Rio de Janeiro: Borsoi, 1966, t. LIII, p. 170.


Mesmo numa perspectiva puramente ressarcitória – e oposta a por nós adotada neste artigo – é possível perceber a tendência ao abandono da categoria clássica do ilícito extracontratual em oposição ao ilícito contratual, em favor de uma nova figura, de maior abrangência, denominada, por Grant Gilmore, de contort (The Death of Contract. Columbus: Ohio State University Press, 1974).


Expressiva a ponderação de Orizombo Nonato: "Contudo é possível, diante deles, afirmar, como o egrégio Clóvis, que a idéia de dano ressarcível é, em nosso direito, mais ampla do que a de ato ilícito". Apud. MELO DA SILVA, Wilson. Responsabilidade sem culpa. São Paulo: Saraiva, 1974, p. 69.


Pontes de Miranda dá exemplo eloquente, no caso do que vendeu penicilina a ser entregue e, tendo havido grande desastre, a empregou nos feridos, não podendo adimplir, no dia, o contrato. Haveria, em tese, ilícito relativo, pela violação da relação contratual. Na espécie, no entanto, isso não ocorre, porquanto a contrariedade ao direito, essencial ao ilícito, foi pré-excluída pelo estado de necessidade. (Tratado de Direito Privado. Rio de Janeiro: Borsoi, 1954, t. II, p. 229).


BEVILÁQUA, Clóvis. O Código Civil comentado. Rio de Janeiro: Ed. Rio, 1976.


De toda sorte, e sem embargo das críticas que se lhe possam ser feitas – no sentido de pretender esgotar o conceito de ilícito civil -, é certo que o art. 159 do Código Civil revogado (inspirador do art. 186 do atual Código Civil) é superior aos modelos legislativos existentes à época de sua edição. Aliás, o próprio BGB, tido como uma codificação tecnicamente escorreita, inseriu o ilícito civil na parte especial, no direito das obrigações, e não na parte geral, como fizeram os códigos civis brasileiros. Outrossim, o BGB optou (§ 823) por uma descrição tarifada dos bens jurídicos que, violados, ensejariam ilícitos, numa técnica inferior àquela adotada pelos códigos civis brasileiros, que se valeram de cláusulas gerais (art. 159, CC/1916; art. 186 e 187, CC/2002).


BRAGA NETTO, Felipe Peixoto. Responsabilidade Civil. São Paulo: Saraiva, 2008, pp. 92/104.


BRAGA NETTO, Felipe Peixoto. Teoria dos Ilícitos Civis. Belo Horizonte: Del Rey, 2003, p. 116/123.


PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de Direito Privado. Rio de Janeiro: Borsoi, 1966, T. LIII, p. 62.


GOMES, Orlando. Introdução ao Direito Civil. Rio de Janeiro: Forense, 1987, p. 417.


Pontes de Miranda prefere o termo ato ilícito em sentido estrito, ou delito civil (Tratado de Direito Privado. Rio de Janeiro: Borsoi, 1954, t. II, p. 213). Essa expressão, contudo, não nos serve, porquanto abrange, em seus limites conceituais, a culpa e o dano, fatores estranhos à eficácia.


Pontes de Miranda, escrevendo em meados do século passado, já consignava: "há mais atos ilícitos ou contrários a direito que os atos ilícitos de que provém obrigação de indenizar". (Tratado de Direito Privado. Rio de Janeiro: Borsoi, 1954, t. II, p. 201). Aliás, ainda antes, em 1928, no seu livro Fontes e Evolução do Direito Civil brasileiro, Pontes já intuía que os ilícitos não se esgotavam no dever de indenizar. Assim, ao esboçar a classificação dos fatos jurídicos adotada pelo Código Civil, bipartia os ilícitos em delitos e outros ilícitos, que não fossem delitos (Fontes e Evolução do Direito Civil Brasileiro. Rio de Janeiro: Pimenta de Mello, 1928, p. 176).


PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de Direito Privado. Rio de Janeiro: Borsoi, 1966, t. LIII, p. 197.


BRAGA NETTO, Felipe Peixoto. Teoria dos Ilícitos Civis. Belo Horizonte: Del Rey, 2002, p. 89.


Curioso é que Pontes de Miranda já houvera assentado a existência, no Brasil, do princípio da primazia da reparação in natura. Hoje, por intermédio do art. 461 do Código de Processo Civil e art. 84 do Código do Consumidor, deve ser buscado, em linha de princípio, a tutela específica da obrigação. Não sendo possível, o resultado prático equivalente. Somente em último caso, as perdas e danos.


Partido da premissa, forte em Pontes de Miranda, de que a relação jurídica está no plano da eficácia, integrada, no seu esquema integral, por direitos e deveres, pretensões e obrigações, ações e situação de acionado (ação de direito material) e exceção e situação de exceptuado.


PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de Direito Privado. Rio de Janeiro: Borsoi, 1954, t. II, p. 202.


BERNARDES DE MELLO, Marcos. Teoria do Fato Jurídico. São Paulo: Saraiva, 1991, p. 199.


LOBO, Paulo Luiz Netto. Condições Gerais dos Contratos e Cláusulas Abusivas. São Paulo: Saraiva, 1991, p. 158.


PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de Direito Privado. Rio de Janeiro: Borsoi, 1966, t. LIII, p. 104.

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