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RESPONSABILIDADE CIVIL SEM DANO-PREJUÍZO? CIVIL RESPONSABILITY WITHOUT DAMAGE?

SUMÁRIO: Introdução; 2 fundamentos constitucionais para a responsabilidade civil sem dano-prejuízo; 3 fundamentos econômicos para a responsabilidade civil sem dano-prejuízo; 4 conclusões; 5 referências.



RESUMO: Aborda a problemática envolvendo a obrigatoriedade ou não do elemento dano para configurar a responsabilidade civil, mostrando a visão clássica da responsabilidade civil e a contemporânea, assentada nas exigências constitucionais da dignidade humana e solidariedade. Aprofunda as categorias do dano-evento e do dano-prejuízo, de modo identificar se é possível configurar a responsabilidade civil apenas com a presença do dano-evento. Aprofunda o viés preventivo da responsabilidade civil a partir do novo matiz constitucional. Apresenta tese que existe responsabilidade civil sem o dano-prejuízo, limitado apenas ao dano-evento, explicando as bases constitucionais que apoiam essa opção hermenêutica.



PALAVRAS-CHAVE: Responsabilidade Civil; Função Preventiva; Dano-Evento; Dano-Prejuízo.



ABSTRACT: It addresses the problematic involving the if is possible civil responsibility without an effectiveness loss, showing classic view of the civil responsibility and a contemporary one based on the constitutional requirements of the human dignity and solidarity. It deepens the damage-event and damage-impairment categories, so identify whether it is possible to set up a civil liability only with a damage-event presence. It deepens the preventive bias of civil liability from the new constitutional nuance. It presents thesis that there is civil liability without harm-injury, limited only to damage-event, explaining as constitutional bases that support this hermeneutic option.



KEYWORDS: Civil Responsibility; Discouragement Function; Damage As Violation Of Rights; Damage As An Effectiveness Loss.



INTRODUÇÃO E APRESENTAÇÃO DA TEMÁTICA



Desde a consolidação da responsabilidade civil como um ramo autônomo do direito civil, doutrina e jurisprudência vinham formando uma voz uníssona quanto a umbilical relação entre responsabilidade civil e a constatação do elemento dano, como consequência do princípio de não lesar outrem (neminem laedere), sendo inócuo falar em obrigação de reparar (responsabilidade civil) o dano sem a existência do mesmo.

No Brasil, o pressuposto ficou mais fortalecido a partir do artigo 927 do Código Civil Brasileiro, segundo o qual, aquele que causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo. Adicionalmente, com a evolução das hipóteses de responsabilidade objetiva, passou-se à clássica assertiva: há responsabilidade civil sem culpa, mas nunca sem dano, sob pena de enriquecimento sem causa de uma das partes.

Nesse espectro, se tornou uma máxima a referida proposição, sempre tendo como pressuposto a inarredável constatação de uma consequência lesiva no patrimônio material ou existencial para a imposição de um dever de indenizar, que tem por objeto o reestabelecimento do momento anterior à ocorrência do dano e/ou a compensação do dano irreparável sofrido, como destaca Sérgio Cavalieri Filho[iii].

Nesse mesmo sentido, recente dissertação de mestrado apresentada por Silvano José Gomes Flumignan à Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo – USP buscou investigar a discussão sob outra perspectiva, contribuindo sobremaneira ao diferenciar o dano-evento do dano-prejuízo, defendendo que uma visão completa do dano só é viável a partir da compreensão dessas duas dimensões do dano.

O dano, sob uma perspectiva, é a lesão ao direito subjetivo ou ao interesse juridicamente protegido (dano-evento); por outra perspectiva, o dano será a consequência da lesão (dano-prejuízo). A conclusão a que chega o autor é a de que a consolidação jurídica do dano necessita da constatação de ambas as esferas do dano: “para a caracterização (...) do dever de ressarcir, ambos precisam estar presentes. Quanto a este ponto não há exceção” [iv].

Deste modo, a referida tese mantém a interpretação majoritária e clássica capitaneada por Sérgio Cavalieri Filho, no sentido de que a responsabilidade civil tem como principal função a reparatória, e, por óbvio, sem o respectivo dano-prejuízo nenhuma importância terá a violação abstrata de interesses juridicamente protegidos, porque “o dano-consequência será o objeto da pretensão ressarcitória. Sem a consequência danosa, pode haver até a responsabilidade penal, a civil jamais” [v].

Contudo, apesar da coerência dessa corrente com os pressupostos por ela traçados, ousa-se discordar. O desconcerto a ser abordado no presente artigo é possível por meio de um novo olhar para a responsabilidade civil, com novos pressupostos assentados no matiz constitucional inaugurada a partir da Constituição Federal de 1988, quando será possível defender a suficiência do dano-evento para configurar a responsabilidade civil.

Portanto, será possível falar em responsabilidade civil sem dano-prejuízo, caso se conceba a responsabilidade civil em sentido amplo e com o objetivo de desestimular condutas censuráveis e violadoras de direito (dano-evento). Nesse viés, ao indagar sobre a possibilidade de responsabilidade civil sem dano, Cristiano Chaves de Farias, Felipe Peixoto Braga Netto e Nelson Rosenvald afirmam que a resposta será negativa se o pressuposto for em termos de responsabilidade civil clássica no sentido de reparar danos injustos, pressuposto assentado há três séculos. De fato, em uma perspectiva puramente reparatória, impossível defender uma responsabilidade sem dano, porque a responsabilidade civil se resumiria a reparar e nada mais[vi].


2 FUNDAMENTOS CONSTITUCIONAIS PARA A RESPONSABILIDADE CIVIL SEM DANO-PREJUÍZO


A possibilidade de assentar a responsabilidade civil em um pilar diverso do unicamente reparatório se solidifica dentro de uma revisão mais ampla de categorias do direito privado à luz da Constituição, tornando possível a responsabilidade civil desempenhar funções diversas da reparatória, como reflexo das novas exigências advindas da falência do modelo jurídico liberal.

O primeiro pressuposto liberal que entrou em crise foi a ideia de que as pessoas eram “livre e iguais”. A liberdade foi pré-requisito para a formação do Estado como consequência da vontade livre de todos, ideia liberal está que se transfere para outras esferas, como no contrato, onde há força obrigatória de tudo o que e pactuado justamente porque as partes são “livres” para contratar, contudo esse dogma não era condizente com a profunda desigualdade e relações de poder no bojo das relações Estado-cidadão, fornecedores-consumidores e empregadores-empregados.

A igualdade foi proclamada como uma exigência apenas o plano formal, o que é demasiadamente importante para rechaçar privilégios de grupos ou pessoas, assegurando um tratamento isonômico perante a lei e o direito. Contudo, do mesmo modo como o fator liberdade entrou em colapso, a igualdade também ganhou outro sentido, a partir das exigências de uma sociedade com justiça distributiva e social, apta a promover e efetivar a igualdade substancial.

O Código Napoleônico de 1807 trouxe consigo uma série de características que representavam bem o ideal burguês. O código foi inspirado no projeto iluminista de expandir os mercados, firmar a liberdade e anilar os monopólios, e, pra isso, sacramentou a proteção da livre contratação e autonomia das partes. Outra característica importante foi o espírito de que a lei poderia ser completa e perfeita na tarefa de regular a vida em sociedade, de modo que as leis escritas, em razão da segurança jurídica respectiva, poderiam compreender todas as regras em vigor [vii].

A ideia de completude representada pelo movimento de codificação teve como pressupostos a concepção de que o direito corresponde à vontade soberana, sendo o direito reflexo da “vontade do legislador”, motivo pelo qual o direito poderia ser equiparado a qualquer outro conhecimento, havendo para cada problema jurídico uma resposta previamente fixada e adequada, como acentua Sebastián Ernesto Tedeschi: “Las reglas del derecho son proposiciones y, como tales, son predicaciones de una cualidad de um ente. (...) Los elementos que constituían esta ideologia era: descriptivismo, sistematicismo y conceptualismo” [viii].

Deste modo, o modelo liberal, a autoridade do Estado não se manifestava nas miríades das relações privadas, pois se concebia que nessa esfera o Estado deveria ser neutro e a economia e iniciativa privada livres. Contudo, o fundamento da referida inércia estava calcado numa concepção de igualdade puramente formal e de liberdade, ambas falaciosas, trazendo como consequência “a prevalência dos valores relativos à apropriação de seus bens sobre o ser, impedindo a efetiva valorização da dignidade humana, o respeito à justiça distributiva e à igualdade material ou substancial” [ix].

Acreditava-se que a competição no âmbito privado e o livre mercado sem a intervenção estatual trouxesse “de maneira não intencional, a harmonia social e o interesse geral” [x], porém o as escolhas e estratégias no mundo dos negócios no tocante à qualidade e segurança “são debatidas num contexto de custo e benefício” (Tradução Livre)[xi], o que apenas reflete a fraca noção de vínculos de dependência e solidarização no âmbito das relações privadas, marcado pelo valor da competitividade e não da dignidade humana, justiça distributiva e solidariedade.

Destarte, iniciou-se um movimento constitucional atento às exigências sócio-econômico-culturais, tão carentes no modelo jurídico liberal, sendo a Constituição Federal de 1988 no Brasil um exemplo disso, que impôs claramente limites à ordem econômica e à iniciativa privada ao sedimentar o comando ético de respeito à dignidade da pessoa humana como dever jurídico (art. 1º, III); ao estabelecer como um de seus objetivos a redução das desigualdades sociais e a promoção do bem de todos (art. 3º, III e IV); ao prever a inviolabilidade de interesses existenciais do ser humano (art. 5º, V e X); ao exigir que a propriedade cumpra a sua função social (art. 5º, XXIII); ao prever a proteção de inúmeros direitos sociais (arts. 6º a 11º); ao estabelecer como dever do Estado a proteção do consumidor e estipular que a ordem econômica deve observar a defesa do consumidor (arts. 5º, XXXII e 170, V).

Assim, o direito constitucional passa a se infiltrar no direito privado, e não é diferente com a responsabilidade civil, orientando e garantindo uma interpretação das categorias clássicas do direito privado no ideal de proteger a pessoa humana em todas as suas dimensões básicas, como em relação à vida, liberdade e igualdade. Assim, a interpretação e construção do direito civil deve ser influenciada pelos ditames constitucionais e o direito civil (com a responsabilidade civil não deve ser diferente) se torna instrumento para a realização dos bens humanos básicos, como explica Sebastián Ernesto Tedeschi[xii].

Nesse viés, os inúmeros comandos da Constituição impactaram sobremaneira no direito privado, determinando agora a prevalência do ser (interesses existenciais) sobre o ter (interesses patrimoniais e econômicos), tornando o Código Civil de 1916 (marcado por regras abstratas e sem sensibilidade com a vulnerabilidade) incapaz de atender a esse novo horizonte, marcado por “restrições e limites, voltados para a preservação dos interesses coletivos, bem como para o desenvolvimento e preservação da dignidade do cidadão, ausentes no sistema clássico do direito civil, consolidado no Código de 1916” [xiii].

Nesta perspectiva, as categorias clássicas do direito privado, como a responsabilidade civil, passaram a ganhar releitura e redimensionamento para ter a sua atuação em harmonia com os interesses existenciais protegidos pela Carta Magna, visto que a superação do modelo burguês implicou em uma controle das práticas privadas pelo Estado (Legislador, Juiz ou Executivo), onde “a cidadania deixa de ser considerada apenas uma relação política entre o indivíduo e o Estado, para se fazer presente em outros níveis e espaços sociais e econômicos, como por exemplo na empresa”[xiv]

Nesse contexto, a subsistência da neutralidade do Estado na economia poderia representar a perpetuação do domínio econômico de uns sobre outros, a manutenção de práticas ultrajantes e censuráveis e a intensificação das desigualdades sociais e econômicas. Em outras palavras, o Estado acabaria por privilegiar que “a vontade dos fortes passasse a dominar e oprimir, acabando por tornar-se um regime de privilégio dos fortes, baseado numa ética individualista” [xv].

É justamente nessa grave distorção que a responsabilidade civil pode se impor como instrumento de efetividade da dignidade humana, solidariedade social e justiça distributiva, nos casos onde restar caracterizada a violação de direitos e/ou interesses juridicamente protegidos no plano abstrato (dano-evento) sem a consolidação da consequência lesiva (dano-prejuízo). De que modo? A partir da imposição de uma verba indenizatória de cunho punitivo-preventivo, denominada de punitive damages (indenização punitiva), fomentando um desestímulo de cunho econômico a atividades ou condutas violadoras de direitos e potencialmente causadoras de danos-prejuízos, ao mesmo tempo em que impõe um padrão de comportamento socialmente desejável, inibindo outros potenciais violadores de direitos a não incorrer na mesma prática.

Tal reconstrução da responsabilidade civil, engendrada pelo protagonismo da Constituição de 1988 como centro irradiador de princípios para o direito privado, fomenta a proteção da dignidade, na medida em que inibe condutas potencialmente causadoras de danos à pessoa humana, considerando o desestímulo imposto pela verba indenizatória, que tornará desvantajoso violar direitos.

No mesmo sentido, a responsabilidade civil atua como um mecanismo de efetivação da solidariedade social, impondo que as atividades e práticas, no momento da escolha da qualidade e segurança, pense no bem do outro como razão para o seu agir. Ou seja, o que é improvável de ocorrer no bojo de relações privadas de massa se torna viável a partir do receio de ser sancionado com uma indenização de cunho punitivo e preventivo, o que acaba por fixar um padrão de comportamento desejável, fazendo que mesmo naquelas atividades que ainda não sejam marcadas por danos-prejuízos haja uma reprimenda da ordem jurídica no sentido de inibir/atenuar a probabilidade de dano-prejuízo futuro pela simples constatação de um dano-evento, ou seja, de uma conduta violadora de interesses juridicamente protegidos.

Por fim, a responsabilidade civil passa a ser vista como mecanismo de efetivação da Justiça Distributiva, na medida a verba indenizatória de cunho punitivo atingirá o bem comum e contribuirá para uma justa distribuição de encargos na sociedade de massa e de risco. Portanto, a responsabilidade civil não é apenas um instrumento da justiça comutativa – tendo por objeto a reposição de perdas injustamente causadas – mas também de justiça distributiva, entendida como o conjunto de exigências de colaboração que intensificam o bem-estar e as oportunidades de florescimento do ser humano[xvi].

Trocando em miúdos, a justiça distributiva parte do pressuposto de que não são todos os seres humanos que possuem as condições essenciais para o florescimento e atualização de suas potencias (realização de projetos de vida), motivo pelo qual para que se persiga o ideal de que todos alcancem a sua felicidade a partir da efetivação dos bens humanos básicos (como a vida, a sociabilidade, o jogo, conhecimento, experiência estética, dentre outros) deve haver – em uma sociedade extremamente desigual - uma efetiva colaboração das pessoas, sendo o papel da justiça distributiva coordenar o a distribuição de recursos, oportunidades, lucros, ônus, vantagens, papeis, responsabilidades, e encargos[xvii].

A responsabilidade civil é sim um problema também de justiça distributiva, pois deve ser motive de reflexão por parte dos juízes, advogados, defensores, legisladores e procuradoras se – à luz dos novos comandos constitucionais - ela não deve ser adequadamente dimensionada de modo a atribuir o ônus de arcar com indenizações punitivas e preventivas para o caso de violações constantes e graves de interesses juridicamente protegidos, possibilitando o fomento do bem comum e dos bens humanos básicos na medida em que inibe/atua conduta presente potencialmente causadora de dano-prejuízo futuro.

No contexto atual de uma Constituição Cidadã inserida no bojo de uma sociedade complexa, massificada e de risco, deve ser matéria da responsabilidade civil indagar quais os padrões de conduta que uma pessoa deve ter em relação ao outro? Qual deve ser a extensão da responsabilidade e em quais circunstâncias? Como devem os riscos da vida em comum serem divididos? Esse esquema busca garantir a justiça distributiva para compensar todos que sofrem dano no curso da vida ao passo que a justiça comutativa visa apenas a reparar/compensar alguém que sofreu um dano-prejuízo de outrem, eis que assentada no viés eminentemente reparatório.

O ideal liberal de um Estado neutro deve ser substituído por um Estado atuante no bojo das práticas sociais privadas de mercado de modo a estabelecer um padrão de comportamento desejável, independentemente de a atividade ou conduta ter causado concretamente a consequência lesiva, sendo suficiente o dano-evento, desde que essa violação ao interesse juridicamente protegido seja marcada por atos reiterados, ultrajantes, mais graves que os outros e sejam caracterizados por alto grau de indiferença perante o outro. Por este motivo, não se defende aqui a aplicação indiscriminada de uma verba de cunho punitivo para toda e qualquer violação de interesses jurídicos, mas sim a aplicação do instituto como uma arma dos vulneráveis contra os mais fortes e poderoso diante de manobras para vilipendiá-los e maculá-los por parte de alguém mais pujante[xviii].


3 FUNDAMENTOS ECONÔMICOS PARA A RESPONSABILIDADE CIVIL SEM DANO-PREJUÍZO


A delineação dos contornos de uma responsabilidade civil sem dano-prejuízo possui o fundamento de cunho constitucional, mas também é possível edificar a obrigação de arcar com uma verba punitiva/preventiva sob uma perspectiva econômica. Isto só é possível porque a responsabilidade civil não se resuma à obrigação de reparar ou compensar um dano-prejuízo (salvo na visão estrita da responsabilidade civil), visto que em seu sentido amplo, a responsabilidade civil possui outras funções, como a preventiva e a punitiva, que são complementares e não excludentes, como destacam Cristiano Chaves de Farias, Felipe Peixoto Braga Netto e Nelson Rosenvald[xix].

A visão estrita da responsabilidade civil entende que o Estado-Juiz não pode atuar anteriormente à produção do dano-prejuízo, ao passo que uma concepção mais ampla da responsabilidade civil, desenvolvida na presente pesquisa, denota que é mais do que seu dever reprimir condutas marcadas por constantes, reiteradas e graves violações de interesses juridicamente protegidos. Isso não significa uma interferência arbitrária e prematura na autonomia privada, mas tão somente uma resposta do ordenamento jurídico a uma atividade que mais cedo ou mais tarde irá produzir o momento patológico do dano-prejuízo.

Essa reação do Estado-juiz a casos graves possui um viés claramente econômico, pois reformula o sentido de responsabilidade civil para o fim de a mesma servir como instrumento de desestímulo de condutas indesejadas, ao mesmo tempo em que se presta para eliminar o lucro ilícito e impor um padrão de justiça e comportamento esperado tanto para o ofensor como para outros potencialmente transgressores como ele.

Ou seja, haverá atos de tamanha gravidade e articulação que a mera indenização compensatória manterá aflorado o ambiente de ilegalidades e produção de danos. São para esses danos, considerados mais graves por algumas características, que a função punitiva da responsabilidade civil se revela adequada. Enquanto que o intento de compensar ou indenizar o prejuízo sofrido se concentra nas consequências suportadas pela vítima, na indenização punitiva o foco é a gravidade do comportamento do agente causador do dano[xx].

A verba punitiva/preventiva será de grande valia para a hipótese de o ofensor desempenhar uma atividade danosa (dano-evento) em relação a qual tem pouca chance de ser responsabilizado, seja porque não foi efetivado dano-prejuízo, seja porque mesmo tendo sido consolidado o dano-prejuízo, estes são de pequena monta e as vítimas não somarão esforços para obter a reparação/compensação. Nesse cenário, o transgressor não terá nenhuma desestimulo que o obstaculize de perpetrar condutas violadoras de interesses juridicamente protegidos.

A fixação de valor indenizatório nessas circunstâncias teria por objetivo impor ao ofensor a obrigação de pagar por um preço que torne mais vantajoso a manutenção de níveis adequados de segurança e qualidade do que a continuidade de práticas danosas. “Os punitive damages devem ser ordinariamente concedidos se, e somente se, o agressor tem uma chance de escapar da sua responsabilização (Tradução Livre)” [xxi].

Ao atuar dessa forma, o Poder Judiciário estaria impactando diretamente nas escolhas do poder privado e consequentemente no nível de importância que será dado a questões como segurança e qualidade, pois sempre as escolhas serão feitas tendo em vista a margem de lucro e maximização dos benefícios próprios, havendo de um lado a balança da minimização dos dispêndios e o consequente pagamento de verbas punitivas e, de outro, a relacionada ao incremento em segurança e qualidade. Se a segunda balança for mais vantajosa economicamente, a responsabilidade civil com viés punitivo/preventivo terá desempenhado bem o seu papel de prevenção de danos à luz do novo perfil constitucional da mesma.

A redução da responsabilidade civil às suas bases clássicas de mais de duzentos anos atrás implicará na procura desenfreada, maliciosa e estrategicamente pensada pela competitividade e obtenção do lucro, onde são ignorados os valores da dignidade humana, solidariedade e justiça distributiva anteriormente tratados. Nessa perspectiva à responsabilidade civil não caberia mais nada diante de danos-eventos conscientes e decorrentes de escolhas delicadamente estudadas, perdendo a possibilidade de atuar ativamente como mecanismo de desequilíbrio econômico [xxii].

Uma eventual crítica à tese aqui exposta deve ser objeto de reflexão. Trata-se da acusação de que verba indenizatória de caráter punitivo/preventivo sem a ocorrência do dano-prejuízo geraria enriquecimento sem causa. Em primeiro lugar, nada impede a aplicação analógica do artigo 13 da Lei da Ação Civil Pública de modo a destinar a indenização punitiva a um fundo, não ensejando o recebimento da importância por nenhuma vítima, mas não deixando de atuar no intento de desestimular.

Em segundo lugar, mesmo que a vítima receba a verba punitiva não haveria enriquecimento sem causa, por que um dos requisitos para a sua configuração é que o enriquecimento seja indevido, não havendo a constatação de um enriquecimento da vítima e o empobrecimento do ofensor injustamente, mas sim em decorrência de uma atividade lesiva de interesses juridicamente protegidos [xxiii].


4 CONCLUSÕES


Qualquer tentativa de reduzir a responsabilidade civil ao seu caráter reparatório/compensatório obstaculiza a sua grande capacidade preventiva, pois a responsabilidade civil em seu sentido amplo possuir diversos outros pilares: “prevenir comportamentos antijurídicos, punir condutas reprováveis e se acautelar diante de atividades potencialmente danosas” [xxiv].

Nesse desiderato, torna-se viável e adequado para casos de extrema gravidade, marcados por profundo desrespeito aos direitos alheiros e reiteração de condutas danosas a condenação a uma verba indenizatória mesmo sem a consolidação do dano-prejuízo [xxv].

A tese da presente pesquisa está calcada num processo complexo de ressignificação e redimensionamento de categorias clássicas do direito privado, como a responsabilidade civil, visto que “los códigos subsisten (...) siempre hay nuevos intentos de sistematizar. (...) Lo que está en crisis son los principios generales del derecho civil”[xxvi].

A releitura de categorias clássicas do direito privado, onde está inserida a possibilidade de uma responsabilidade civil sem dano-prejuízo, passa pela redefinição da divisão entre público e privado; b) reconsideração das abordagens multidisciplinares internas e externas; c) construção de novos princípios gerais para o direito privado e d) nova visualização dos conflitos jurídicos como parte de um conflito social, onde o público é aquilo que aparece em público e designa o mundo que nos é comum[xxvii].


REFERÊNCIAS



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Notas



[i] Pós Doutora em Direito pela Universidade de Carlos III (Madrid). Doutora em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Mestre em Direito pela Universidade Federal do Pará. Professora da Universidade Federal do Pará e da Universidade da Amazônia. Desembargadora do TRT da 8ª Região. Pesquisadora de Responsabilidade Civil Contemporânea. Email: pastoraleal@uol.com.br


[ii] Doutorando e Mestre em Direito pela Universidade Federal do Pará. Professor da Universidade da Amazônia e da Devry/Faci. Professor Orientador do Grupo de Responsabilidade Civil da Liga Acadêmica Jurídica do Pará na área de Responsabilidade Civil. Advogado. Email: alexandrebonna@yahoo.com.br



[iii] Se o motorista, apesar de ter avançado o sinal, não atropela ninguém, nem bate em outro veículo; se o prédio desmorona por falta de conservação pelo proprietário, mas não atinge nenhuma pessoa ou outros bens, não haverá o que indenizar. (...) O ato ilícito nunca será aquilo que os penalistas chamam de crime de mera conduta; será sempre um delito material, com resultado de dano. Sem dano pode haver responsabilidade penal, mas não há responsabilidade civil. (CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de responsabilidade civil. 10ª ed. São Paulo: Atlas, 2012, p. 76-77).


[iv] FLUMIGNAN, Silvano José Gomes. Dano-evento e dano-prejuízo. Dissertação de mestrado. São Paulo: USP, 2009.


[v] FLUGMINAN, Silvano José Gomes. Dano-evento e dano-prejuízo, p. 124.


[vi] FARIAS, Cristiano Chaves de; BRAGA NETTO, Felipe Peixoto; ROSENVALD, Nelson. Novo Tratado de responsabilidade civil. São Paulo: Atlas, 2015, p.57.


[vii] TEDESCHI, Sebastián Ernesto. El Waterloo del Código Civil Napoleónico: una mirada crítica a los fundamentos del Derecho Privado Moderno para la construcción de sus nuevos princípios generales. In: COURTIS, Christian. Desde outra mirada. Buenos Aires: Universidad de Buenos Aires, 2011, p. 163.


[viii] TEDESCHI, Sebastián Ernesto. El Waterloo del Código Civil Napoleónico: una mirada crítica a los fundamentos del Derecho Privado Moderno para la construcción de sus nuevos princípios generales. In: COURTIS, Christian. Desde outra mirada, p. 164.


[ix] RAMOS, Carmem Lúcia Silveira. A constitucionalização do direito privado e a sociedade sem fronteiras. In: FACHIN, Luiz Edson. (Coord.). Repensando fundamentos do direito civil brasileiro contemporâneo. Rio de Janeiro: Renovar, 1998, p. 5.


[x] RUZYK, Carlos Eduardo Pianovski. A responsabilidade civil por danos produzidos no curso de atividade econômica e a tutela da dignidade da pessoa humana: o critério do dano ineficiente. In: BODIN, Maria Celina Bodin; et al. (Org). Diálogos sobre direito civil: construindo uma racionalidade contemporânea. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 142.


[xi] SEBOK, Anthony J. Punitive damages: from myth to theory. Iowa Law Review, Vol. 92, 2007, p. 166.


[xii] De un derecho privado construido sobre la base de la parte general y el derecho de las obligaciones del derecho civil hemos passado al fenómeno inverso. Podemos mencionar la crisis de la noción de persona, que recibió el impacto de la genética creando nuevos status jurídicos; los derechos personalíssimos, que surgen em los tratados y constituciones, y desde allí penetran en los códigos (TEDESCHI, El Waterloo del Código Civil Napoleónico: una mirada crítica a los fundamentos del Derecho Privado Moderno para la construcción de sus nuevos princípios generales. In: COURTIS, Christian. Desde outra mirada., p. 169/170).


[xiii] RAMOS, Carmem Lúcia Silveira. A constitucionalização do direito privado e a sociedade sem fronteiras. In: FACHIN, Luiz Edson. (Coord.). Repensando fundamentos do direito civil brasileiro contemporâneo, p. 7.


[xiv] RAMOS, Carmem Lúcia Silveira. A constitucionalização do direito privado e a sociedade sem fronteiras. In: FACHIN, Luiz Edson. (Coord.). Repensando fundamentos do direito civil brasileiro contemporâneo, p. 7.


[xv] RAMOS, Carmem Lúcia Silveira. A constitucionalização do direito privado e a sociedade sem fronteiras. In: FACHIN, Luiz Edson. (Coord.). Repensando fundamentos do direito civil brasileiro contemporâneo, p. 5.


[xvi] FINNIS, John. Lei natural e direitos naturais. Trad. Leila Mendes. São Leopoldo: Unisinos, 2007, p.165.


[xvii] FINNIS, John. Lei natural e direitos naturais, p. 167-173.


[xviii] RUSTAD, Michael; KOENIG, Thomas. The historical continuity of punitive damages awards: reforming the tort reformers. The American university law review, vol. 42, 1993, p. 1.285.


[xix] O sistema de responsabilidade civil não pode manter uma neutralidade perante valores juridicamente relevantes em um dado momento histórico e social. Vale dizer, todas as perspectivas de proteção efetiva de direitos merecem destaque (...) através da combinação das funções basilares da responsabilidade civil: punição, precaução e compensação. Responsabilizar’ já significou punir, reprimir, culpar; com o advento da teoria do risco, ‘responsabilizar’ se converteu em reparação de danos. Na contemporaneidade, some-se à finalidade compensatória a ideia de responsabilidade como prevenção de ilícitos (FARIAS; BRAGA NETTO; ROSENVALD. Novo Tratado de responsabilidade civil, p. 57).


[xx] BONNA, Alexandre Pereira. Punitive damages (indenização punitiva) e os danos em massa. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2015, p.39-40.



[xxi] POLINSKY, Mitchell; SHAVELL, Steven. Punitive damages: an economic analysis. In: Litigation services handbook: the role of the financial expert. WEIL, Roman L.; WAGNER, Michael J.; FRANK, Peter B. 3ª ed. New York: John Wiley e Sons, 2001, p. 2-3.


[xxii] No cálculo dos meios eficientes para a obtenção dos fins, o risco de dano à pessoa somente será elemento relevante se o dano implicar prejuízo (econômico) à variável da equação que impõe a minimização das perdas. (...) No curso de atividades econômicas, de danos que afetem a dignidade da pessoa humana, a responsabilidade civil pode ter um papel relevante. A operacionalização desse instituto pode produzir uma intervenção na relação meios-fins da atividade econômica, tornando ineficiente aquilo que pode violar o princípio da dignidade (RUZYK, Carlos Eduardo Pianovski. A responsabilidade civil por danos produzidos no curso de atividade econômica e a tutela da dignidade da pessoa humana: o critério do dano ineficiente. In: BODIN, Maria Celina Bodin; et al. (Org). Diálogos sobre direito civil: construindo uma racionalidade contemporânea, p. 144).


[xxiii] RUZYK, Carlos Eduardo Pianovski. A responsabilidade civil por danos produzidos no curso de atividade econômica e a tutela da dignidade da pessoa humana: o critério do dano ineficiente. In: BODIN, Maria Celina Bodin; et al. (Org). Diálogos sobre direito civil: construindo uma racionalidade contemporânea, p. 148.


[xxiv] FARIAS; BRAGA NETTO; ROSENVALD, Novo Tratado de responsabilidade civil, p. 58.


[xxv] Pessoas que participem de racha de veículos serão sancionadas pela sua conduta extremamente reprovável de exposição deum número indeterminado de pessoas ao risco de sua atividade, a par do fato de que o evento tenha deflagrado danos econômicos ou existenciais em face de terceiros. Uma montadora de veículos poderá ser condenada a uma punição privada pela extrema negligência em retardar a convocação de um recall, pelo simples fato da extrema possibilidade de causar danos aos consumidores de seus veículos (FARIAS; BRAGA NETTO; ROSENVALD, Novo Tratado de responsabilidade civil, p. 59).


[xxvi] TEDESCHI, Sebastián Ernesto. El Waterloo del Código Civil Napoleónico: una mirada crítica a los fundamentos del Derecho Privado Moderno para la construcción de sus nuevos princípios generales. In: COURTIS, Christian. Desde outra mirada, p. 173.


[xxvii] TEDESCHI, Sebastián Ernesto. El Waterloo del Código Civil Napoleónico: una mirada crítica a los fundamentos del Derecho Privado Moderno para la construcción de sus nuevos princípios generales. In: COURTIS, Christian. Desde outra mirada, p. 174-180.

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